Para espantar o medo

Redação — Mosaico
Instituto Mosaico
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3 min readFeb 8, 2018

Por Gustavo Santiago

Dias atrás, no meio da manhã, surgiu no consultório um rosto que para mim ainda não era conhecido. Dona Terezinha já havia passado pela equipe, mas até então eu não conhecia sua história. Entrando na sala, quase não tive tempo para cumprimentá-la pois antes mesmo de sentar, ela já começou a contar o porquê estava lá.

- Doutor, estou terminando um tratamento de câncer, mas não é por isso que vim aqui hoje.

No rosto, ela carregava aquela expressão de quem tem muito o que dizer e mal sabe por onde começar, mas precavida que era, trazia consigo uma listinha de suas queixas. Entre a dor de barriga esporádica, a do joelho que piorava com os esforços e o desânimo que andava tirando sua fome, ficava claro que o plano de fundo em que os sintomas eram listados era mais importante do que eles.

- E tirando estes sintomas todos, como a senhora está?

- Como assim doutor?

- Quero dizer, se a gente pudesse hoje mandar para longe todas essas dores, a senhora ficaria feliz?

- Acho que não doutor, tenho muito medo!

- Medo de quê?

- De morrer, né. Quando a gente descobre essa doença, esse é maior medo que a gente tem, de não saber como vai ser o amanhã.

- Mas, antes de descobrir esse câncer, a senhora sabia?

- Não… Mas é diferente…

- O que mudou?

- Agora tenho mais medo, mesmo o tratamento já estando no final.

Medo. Essa era a palavra chave ali. Talvez por isso eu esteja escrevendo este texto.

Percebi que naquele momento, o mais importante seria ouvi-la falar um pouco sobre suas angústias. A conversa foi muito produtiva. Colocamos na nossa pauta termos como resiliência e ressignificação. Lembrei de uma reflexão que eu guardava e que diz que o oposto do medo não é a coragem, mas sim a gratidão.

Faz todo sentido. Já passei por algumas situações em que tive que ser corajoso apesar de estar com medo. Quando me via assim e tentava apenas ser grato pelas mais diversas razões, o medo parecia se dissipar.

Começamos a falar sobre os motivos que ela tinha para agradecer neste último ano. Não faltaram razões. Dona Terezinha estava grata por estar viva, por aprender a dar mais valor para essa vida, grata pelo sobrinho que a levava para o hospital e pela união com sua irmã que tanto a ajudava nesse momento difícil. Estava grata por ter resolvido cuidar melhor da sua saúde e agora nos tempos vagos, decidiu até se dedicar à hidroginástica. Para me encher o coração de alegria, disse ainda que estava grata pela conversa que estávamos tendo.

Naquele dia eu estava bem chateado, faltava até papel para imprimir as receitas. Havíamos atingido um ponto em que os próprios pacientes traziam folhas para nos ajudar a manter o funcionamento da clínica. Comecei a listar os meus motivos para de agradecimento, entre eles, as tantas manifestações de resistência que estava presenciando nesses últimos meses tão desafiadores para a saúde pública aqui no Rio. Funciona mesmo. Me senti mais forte, vi que temos mais motivos para resistir, que luta é assim mesmo e que esperar é caminhar. Parafraseando Quintana sobre os atravancadores de caminhos: “eles passarão, nós passarinhos”.

Gustavo Santiago. Médico residente em Medicina de Família e Comunidade. Músico nas horas vagas. Capixaba se aventurando no Rio de Janeiro

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