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Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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5 min readAug 20, 2018

Queermuseu aberto ao público é oportunidade para se pensar com a própria cabeça, desenvolver o raciocínio crítico e a liberdade de consciência

Por Carlos Fernandes

Foto: Carlos Fernandes

Manifestantes disputam atenções na entrada do Queermuseu: divergências seriam melhor aproveitadas como exercício de tolerância

De um lado, os Templários da Pátria — grupo formado por defensores da família e da nação brasileira — e a Liga Cristã Mundial, cuja missão, além de combater o “terrorismo islâmico e o comunismo”, é defender os símbolos cristãos. Do outro, coletivos de afirmação LGBTQ, o maracatu animado do Baquemulher e palavras de ordem como “famílias gays também são famílias” e “Mariele presente”. Contudo, o que chegou a ser temido como um confronto não passou dos enfrentamentos verbais entre alguns integrantes dos dois lados da trincheira que se formou na abertura da mostra QueermuseuCartografias da diferença na arte brasileira no Rio. Ela abriu as portas, no dia 18 de agosto, no Parque Lage, quase um ano depois de ter sido envolvida em um tremendo bafafá em Porto Alegre (RS). Na época, o banco responsável pela exposição cedeu aos protestos e, claro, às ameaças de boicote por parte de correntistas e recolheu as peças apenas três semanas depois da inauguração. Agora, graças a uma vaquinha virtual e às doações de empresas e artistas, arrecadou-se mais de um milhão de reais para expor obras como Cena de interior II (com detalhes que retratam sexo grupal e prática de zoofilia) e Travesti da lambada e deusa das águas — onde se destaca a mensagem “Criança viada” — na descolada Zona Sul do Rio.

No ano passado, a polêmica em torno da mostra chegou à Justiça, motivou audiências públicas no Congresso e jogou nitroglicerina pura no debate sobre liberdade de expressão, vilipêndio de símbolos religiosos e pedofilia. Agora, o Queermuseu rende, no máximo, bate-bocas inusitados. Caso da moça com bandeira e camisa do arco-íris, símbolo do movimento gay, tentando convencer um tiozinho indignado de que a Capela Sistina, no Vaticano — com seu Adão peladão pintado por Michelangelo –, também é liberdade de expressão. Ou de um jovem integrante uniformizado do Movimento Brasil Livre (MBL) argumentando com um transgênero empedernido que simular práticas sexuais com um crucifixo ofende a muita gente. E eu, que fui lá para conferir tudo com um olhar muito mais jornalístico do que religioso, fiquei com a certeza de que uma enorme quantidade de energia, tempo e recursos públicos foi desperdiçada pelos gaúchos.

Na cidade de Marcelo Crivella, os espaços culturais do município foram fechados ao Queermuseu. Com ironia, o prefeito, que é bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, disse que, aqui, a exposição só seria feita no fundo do mar. Pois apenas uma chuva forte, logo substituída pelo delicioso sol de inverno, molhou os milhares de visitantes que encararam até duas horas de fila para conferir o que estava dentro das centenárias cavalariças do parque. Na porta, um aviso bilíngue alerta que a exposição contém cenas de arte com representação de nudez, sexo e simbologia religiosa, e que se recomenda “levar isso em consideração antes de entrar”. Bingo! Respeitando-se a classificação restritiva a menores de 14 anos determinada pela Justiça, entra quem quer e já sabendo o que vai ver lá dentro, seja arte ou lixo na visão do visitante.

Depois da interessante experiência sociológica do lado de fora, passei uns 40 minutos observando as telas, instalações, fotomontagens e esculturas do Queermuseu. São duzentas e tantas peças, mas o grande afluxo de pessoas e a mania das selfies dificultam qualquer apreciação. Se o termo inglês queer tem relação com gente que não se enquadra em definições como “homem” ou “mulher”, a mostra acerta na mosca — tanto no acervo como na capacidade de atrair uma fatia de público sorridente, extravagante e eufórica, que deve bater ponto lá todos os dias junto com milhares de outras pessoas. Depois de tanta polêmica, a expectativa da Curadoria e dos organizadores é que haja um recorde de público. Bom para a liberdade de expressão, melhor ainda por proporcionar aos mortais a oportunidade de pensar com as próprias cabeças, desenvolver o raciocínio crítico e exercer o direito à opinião.

De propósito, deixei para ver Cruzando Jesus Cristo com deusa Shiva, tela de Fernando Baril, por último. Profana, inclusiva, blasfema e libertária são alguns adjetivos atribuídos à obra, que ganhou fama repentina. Multicolorido, o quadro interpreta a figura máxima do Cristianismo pregado à cruz com a inconfundível coroa de espinhos, enquanto ostenta os múltiplos braços de uma das divindades centrais do Hinduísmo. Ícones da cultura pop e do capitalismo juntam-se aos tênis nos pés da figura e a referências bíblicas, como o hot dog e o peixe em algumas das quatorze mãos. Olhei de perto e de longe, observei detalhes e também fiz uma selfiezinha, que ninguém é de ferro. Quando saí, dei de cara com outra representação de Cristo, fincada no topo do Corcovado — esta, bem mais comportada e aceita. Só que nem o quadro, nem a estátua me causam qualquer incômodo, já que o Jesus em que creio é Espírito e nada tem a ver com as representações artísticas que fazem dele há dois mil anos. Peço a ele que, com o mesmo amor pelo qual encarou a cruz, nos ajude a atravessar mais ou menos incólumes o pântano de ignorância, boçalidade e intolerância no qual nos encontramos imersos.

Carlos Fernandes tem 50 anos e é carioca. Jornalista, editor e redator, passou vinte anos na direção das revistas de informação cristã Vinde/Eclésia e Cristianismo Hoje. Hoje, trabalha no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e faz produção editorial e preparação de textos para diversas editoras.

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