Por que a embaixada em Jerusalém? Parte 1 — Fundação do Estado de Israel e complexidade do conflito

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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7 min readMar 18, 2019

Por Manoel Botelho

Foto: Dennis Jarvis, Flickr

Muito provavelmente você deve ter ouvido falar que o presidente Bolsonaro mudará (ou mudaria) a embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém — assim como fez Donald Trump. Depois disso muito se comentou sobre o assunto, mas, em geral, pouco se sabe sobre o conflito na região.

Como nesses pouco mais de 70 dias de governo muita coisa aconteceu e outras pautas entraram no foco, aproveitando essa pausa sobre o caso da Embaixada em Jerusalém, vamos escrever e pensar sobre.

Jerusalém pertence a qual país? Qual é a capital de Israel? Onde fica a Palestina? Qual relação entre Israel bíblico e o Estado recente de Israel? Quem são os árabes? E os palestinos?

Estas são algumas das infinitas perguntas que podem ser feitas sobre o conflito palestino-israelense. Por este motivo escreverei uma série de textos — sendo este o primeiro — sobre a possível mudança da embaixada para Jerusalém. Abordando, minimamente, algumas diferentes perspectivas sobre o assunto: histórica, geográfica, social, econômica, política e teológica.

Se você é de tradição cristã, deve ter cantado algumas músicas sobre o povo de Israel, o Deus de Israel, Jerusalém, Sião, nova Jerusalém. Deve, também, ter informações como: Jesus Cristo nasceu em Belém da Judeia; Moisés cruzou o mar vermelho e tantas outras histórias bíblicas sobre o “Israel de Deus”. Acontece que o Estado de Israel, que tem como primeiro ministro, desde 2009, Benjamin Netanyahu, não é o Israel da Bíblia.

Também é importante diferenciar Judaísmo e Sionismo[1]. Judaísmo é a primeira religião monoteísta do mundo. Tem suas diferentes vertentes, leituras ou linhas, mas é uma cultura, religião e um povo. Existem, sim, aqueles judeus que usam roupas diferentes, chapéus, perucas e saias longas, mas esta é ‘uma linha’, a ortodoxa; há também os conservadores, os reformistas, os humanistas e até os laicos.

Já o Sionismo é a crença ou a ideia que crê na existência do Estado de Israel e na sua importância para a continuidade do povo judeu. Também há diferentes linhas do sionismo, como o político e espiritual. De qualquer maneira, pode-se dizer que todo sionista acredita que Israel deve existir. Notem que nem todo judeu é sionista, assim como não é preciso ser judeu para acreditar na necessidade da existência do Estado de Israel.

Este Estado de Israel que estamos falando foi fundado em 1948. Sim, é mais novo que o Brasil. Mas é óbvio que existem os chamados mitos fundadores, assim como temos do “descobrimento” do Brasil, da independência, e etc. Aliás, só podemos dizer que é mais novo que o Brasil, se considerarmos Brasil somente a partir do momento que os europeus pisaram os pés aqui. Antes não existia Brasil?

Voltando ao Oriente Médio, vamos tentar explicar o conflito com uma breve cronologia da divisão do território e suas disputas. Alguns historiadores defendem que o nome “Palestina” foi dado pelos romanos que ocuparam o território entre aproximadamente 60 a.C. e 4 d.C. Ainda no primeiro século da era cristã, grande parte dos que viviam lá foram expulsos das terras pela ocupação romana. Com o surgimento do Islã, no sexto século da era cristã, a Palestina foi ocupada pelos árabes e, posteriormente, durantes as Cruzadas, foi grande a disputa entre os cristãos europeus e as forças árabes para controlar a “Terra Santa.”

Já no século XVI, ela passa a fazer parte do Império Otomano, domínio esse que durou até a Primeira Grande Guerra. A partir do início dos anos 1920, o território palestino foi formalmente controlado pelo Reino Unido e então, com o apoio do império britânico, judeus espalhados pelo mundo começaram a retornar à Terra Santa. Jerusalém foi a capital do Mandato Britânico da Palestina até 1948.

Márcio Scalercio (2003)[2], lembra que os judeus sionistas sempre tentaram negociar sua volta a sua chamada “Terra Prometida”, (o retorno a “Sião”) com quem ocupava a terra — otomanos, primeiramente, e depois ingleses — mas jamais com quem era dominado e vivia na terra, o povo palestino. Então “o Estado de Israel foi criado a partir da junção de um movimento religioso de longa data, o sionismo, e um movimento político idealizado por Theodor Herlz, o “sionismo político.”[3]

Fato é que, tanto as causas quanto as circunstâncias em que aconteceu 1948 são bastante controversas: de um lado tem-se a tradicional narrativa sionista que chama de “Guerra de Independência de Israel” e, do outro lado, os palestinos chamam de Nakba, que significa ‘catástrofe’ em árabe. “Os palestinos defendem que os mais de 700 mil refugiados palestinos foram diretamente expulsos ou aterrorizados a fugirem de suas terras pelas forças sionistas-israelenses.”[4] Interessante notar que essa história não chega até nós; o que dizemos no Ocidente é que os palestinos saíram por livre e espontânea vontade, ou por ordem de seus líderes. Ou seja, por um milagre, as pessoas aceitaram livremente sair de seus territórios, suas casas, suas histórias para que outras pessoas pudessem morar lá e a palavra usada é ‘milagre’ mesmo, tanto que Chaim Weizman, que foi o primeiro presidente de Israel afirmou que houve uma “limpeza milagrosa da terra: a milagrosa simplificação da terra de Israel”[5]. Além do milagre, existe uma outra palavra que chama atenção nessa afirmação, “limpeza”. O que significa ‘limpar’? Por essa fala já é possível identificar qual visão queriam colocar sobre o povo palestino, qual o viés. Se a saída do povo foi uma limpeza, logo, o povo é considerado algo sujo?

Nessa disputa de narrativas é interessante ressaltar que Ilan Pappe, um historiador judeu, escreve o livro “A limpeza étnica da Palestina”[6] em que ele diz que não há uma guerra “simplesmente”, mas que há sim uma limpeza étnica planejada e executada no chamado Plano Dallet[7]. Essa saída/expulsão do povo palestino foi tão grande que, ao final do ano de 1948, a ONU emitiu a resolução 194[8], que determinava a permissão do regresso dos palestinos e palestinas refugiadas. A chamada Guerra de Independência não foi feita por aqueles que já estavam na terra, mas sim por aqueles que queriam dominá-la expulsando os que lá já estavam. Em resumo, os palestinos sempre sofreram em sua terra, em 1948 foi criado um Estado na terra em que já havia gente morando, da qual foram expulsos.
A intenção deste primeiro texto não é me aprofundar nas diferentes perspectivas sobre a criação do Estado de Israel. É mostrar que não é “tão simples” — nenhuma história de independência ou criação de um novo Estado é simples como se imagina. O assunto não se encerra, não se esgota… mas espero que tenha ficado nítida sua complexidade. Mas e Jerusalém de que lado fica?

No próximo texto, veremos como ficou e como ficaram a divisão do território que é o Estado de Israel, onde moraram e moram os palestinos/as e os/as israelenses, como foi a divisão e qual a situação atual e como ficou Jerusalém nessa “divisão”.

[1] https://www.huffpostbrasil.com/anita-efraim/a-diferenca-entre-ser-judeu-sionista-e-contra-o-atual-governo-i_a_21682085/

[2] SCALERCIO, Márcio. Oriente Médio: Uma análise reveladora sobre dois povos condenados a viver. Rio de Janeiro: Campos, 2003.

[3] PERES, Maira Russo. Palestino em Israel: uma análise da repercussão do conflito israel-palestino no direito humanos dos palestinos em território israelense — Porto Alegre, 2014

[4] Huberman, Bruno. Judaizacao da Palestina ocupada : colonizacao, desapropriacao e deslocamento em Jerusalem Oriental, Cisjordânia e Faixa de Gaza entre 1967 e 2013 (Dissertação em RI) Sao Paulo, p. 29. 2014.

[5] MASALHA, Nur. The Politics of Denial: Israel and the Palestinian Refugee Problem. London: Pluto Press, p, 174, 2003

[6] PAPPE, Ilan The Ethnic Cleasing of Palestin. Oxford: Oneworld, 2006. * O livro que tive acesso é esta versão em inglês contudo já foi publicado em Português em 2016 pela editora Sundermann.

[7] Foram três planos, ao todo, para realizar a limpeza étnica (Plano A, 1937; Plano B, 1946 e que passou a integrar o Plano C, de 1948). No entanto, o mais minucioso e melhor estruturado foi o Plano Dalet (“D” em hebraico). Assim, “alguns dias depois de escrito, o Plano D foi distribuído entre os comandantes das 12 brigadas incorporadas agora à Haganá. Junto à lista recebida vinha uma descrição detalhada dos vilarejos no seu raio de ação e de seu destino imanente: ocupação, destruição e expulsão. Os documentos israelenses liberados pelo arquivo das Forças de Defesa de Israel no final dos anos 1990 mostram claramente que, ao contrário das alegações feitas por historiadores como Benny Morris [historiador israelense], o Plano Dalet foi entregue aos comandantes de brigadas não como diretrizes gerais, mas como categóricas ordens para a ação” (p. 103). [ https://outraspalavras.net/sem-categoria/ilan-pappe-a-coragem-crimes-de-israel/ ]

[8] ONU. Conselho de Segurança. Resolução 194. New York, 1948 https://www.unrwa.org/content/resolution-194

Manoel Botelho. Integra a Rede Ecumênica de Juventude. Foi observador de Direitos Humanos nos Territórios Palestinos Ocupados e é professor nas áreas de política e filosofia.

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