PREGUIÇA COMO MÉTODO

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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4 min readFeb 23, 2021

Por Valdemar Figueredo

Foto: Divulgação

Mario Quintana não era dado a escrever sobre as estruturas sociais-políticas-econômicas. Preferia olhar para o prosaico. Viveu a vida adulta em Porto Alegre. Andarilho que observava tanto o pitoresco das ladeiras da cidade, quanto o habitual nas mesas no fundo do bar. O quintanares é infância na cidade de Alegrete (RS).

O poeta recita a poesia no lento. Daí nossa impressão de um idoso vagaroso, quase lerdo, escorado na bengala para o seu fazer poético. Leitores apressados, percebam que não estamos discutindo uma questão de ritmo, mas de paisagem. O lento não é necessariamente o poeta, mas a paisagem que ele observa e descreve.

Relata os acontecimentos do dia a dia sem fazer força para transformá-los em eventos especiais. O comum pode ser belo sem precisar ser excepcional. O elogio à simplicidade tem a ver com a disposição de ser comum sem ser vulgar. Em Quintana, a sofisticação está no modo simples com que vê e diz as coisas.

O quintanares é saudade da infância na cidadezinha. Perceba que em Quintana infância não se restringe a faixa etária; cidadezinha não se define por tamanho espacial; e interior não se determina a partir de marcos geográficos. Infância, cidadezinha e interior assumem um sentido único: saudade. “O que fazem as coisas pararem no tempo é a saudade.” (p. 84).

Por diversos modos, Quintana se afasta de todas as tentativas de definir a poesia. A propósito, essa era uma ideia fixa dele: poesia não se define. Seja a dele ou de qualquer outro. A poesia não se decifra porque não guarda um segredo oculto. Os sentidos últimos que precisam ser procurados no texto poético têm a ver com a criatividade do intérprete, bem mais do que com as intenções do poeta. Quintana fala da sua poesia como o pintor borra o seu pincel na paleta de cores. A arte final fica parecida com o esboço. O esboço é o quadro incompleto, não obstante, emoldurado assim mesmo. Lembrar que preguiça em Quintana não é falta de interesse ou empenho. Preguiça é método.

“Duas coisas ativam minha poesia: a poluição sonora das grandes cidades e o silêncio das cidades pequenas” (p. 108). O pintor encontra a cor na mistura e dispõe a imagem fazendo uso do contraste entre figura e fundo. O poeta em questão acha a sua poesia no contraste de ares entre Alegrete (RS) e Porto Alegre (RS). Essas cidades são representativas e não exclusivas. A vida vivida no lento no interior e agitada no litoral. Claro que são idealizações que alimentam a memória. Saudade não só como produto da memória, mas como exercício da criatividade. O ancião fala do menino real, assim como do menino idealizado. Seria ofensivo perguntar o que em Quintana é história e o que é ficção. Ora, basta-nos saber que é tudo poesia.

Seguindo esse fio de pensamento, no quintanares não fica nítida a fronteira entre poesia e prosa. É tudo poesia. Ele só consegue versar em prosa livre. Intencionalmente, transgressor, torna a poesia uma “despretensiosa” prosa. É tudo prosa. O tipo de fala mais apropriada para ser sussurrada ao pé do ouvido do que gritada nos palcos. O ritmo de Quintana é risonho. Aliás, sua simplicidade não rima com sobriedade.

Assim como é perda de tempo tentar interpretar as poesias supondo que guardam sentidos ocultos, também é desnecessário tentar decifrar o poeta através de pistas textuais. Até porque “quem nunca se contradiz deve estar mentindo” (p. 132). Quintana se contradiz frequentemente, talvez esteja tentando falar a verdade. Mas como podemos saber? Melhor deixar como está: uma obra em esboço, mas não obstante, na moldura como se estivesse finalizada.

Referência bibliográfica

QUINTANA, Mario. Da preguiça como método de trabalho. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013

Valdemar Figueredo

Editor Instituto Mosaico, professor universitário e pastor deslocado. Leciona nas áreas de ética e política. Na periferia atento à espiritualidade prosaica.

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