RACISMO x CONSUMO

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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5 min readApr 5, 2021

Por Alexon Fernandes

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Foto: Dazzle Jam, Canva

São raras as exceções de uma pessoa negra que não tenha passado por algum episódio de discriminação ao tentar comprar algum produto, principalmente se este produto for de alto valor agregado ou que tradicionalmente não seja vendido em locais frequentados por pessoas negras. Também são muito comuns os relatos de perseguições de seguranças de lojas e shopping centers à pessoas negras — que, por sua vez já sabem que estão sob suspeita de um eventual roubo no local. Frases como “este produto é muito caro para você”, “acho que esta loja não é para o seu perfil” ou “nós temos produtos da coleção passada naquela arara” são frequentemente ouvidas por pessoas negras, quando estão à procura de itens mais caros nas lojas de marcas consideradas de maior prestígio. É inegável o estranhamento flagrante quando negros e negras entram nos restaurantes ou hotéis mais caros.

Situações descritas acima são apenas algumas com as quais negros precisam lidar. São momentos constrangedores e que revelam quão longe estamos de relações respeitosas entre estabelecimentos comerciais e consumidores negros. Muitos casos desta discriminação se dão em lojas de marcas cujos maiores garotos-propagandas são negros, revelando que um corpo negro representando uma marca não é o mesmo que afirmar que esta marca preza por atitudes antirracistas em seus estabelecimentos. Um bom exemplo disso são os grandes bancos de varejo. Alguns já veicularam campanhas com personagens negros, mas o tratamento seletivo em suas portas eletrônicas deixa claro que existe uma cor de pele específica para as constrangedoras abordagens dos seguranças.

Estereótipo, Subjetividade e Violência

De acordo o filósofo Michael Foucault, na sua obra Em Defesa da Sociedade, nas sociedades modernas e contemporâneas, os estados nacionais precisam impor soberania — seja por meio de leis, de políticas ou da força. Para isso, é essencial a noção de integridade nacional, que é muitas vezes expressa pela “proteção à raça”, resultando no que se pode chamar de racismo estatal. Temos exemplos muito significativos no século XX, como as ações antissemitas, na Alemanha nazista, e o regime do apartheid, na África do Sul. No racismo de estado, o estereótipo a ser negado (e, se possível, extinto com o passar do tempo) é criado pelas políticas estatais e repetido pelos meios de comunicação de massa, construindo assim uma subjetividade coletiva. Na Alemanha, foi o judeu (considerado, inferior, inimigo do estado, mesmo que contribuindo significativamente para a ciência, a economia e as artes alemãs). Já na África do Sul, o apartheid determinava aos negros sul-africanos os piores serviços públicos, a perseguição política, o afastamento dos bairros centrais, a criminalização dos casamentos mistos, a retirada da cidadania sul-africana, entre outras ações bárbaras. É o que Foucault nominou de biopoder.

No Brasil, desde antes do final oficial da escravidão, em 1888, com a criação sistemática de leis que impediam os negros de acessarem à terra, aos meios de produção e aos serviços de uma cidadania integral. Além disso, a construção da subjetividade coletiva em torno dos negros foi na direção de uma subjetividade negativa, inclusive com o apoio da Academia nas primeiras décadas dos anos 1900, ao lançar mão de uma pseudociência (a eugenia) para determinar um lugar social para os negros. Os meios de comunicação fizeram sua parte, principalmente com os adventos dos jornais de grande circulação, da televisão e da teledramaturgia, relegando aos negros os estereótipos do bandido, do homem rude, da mulher barraqueira ou hipersexualizada, do serviçal, de alguém sem pensamento sofisticado, do povo sem história e sem cultura.

Estes fatores resultam numa desumanização dos grupos discriminados, naturalizando a violência contra estes grupos, seja pelo estado — a quantidade brutal de mortes de negros por armas de fogo -, seja pela sociedade — os assassinatos de João Alberto, numa loja do Carrefour, em Porto Alegre, e de Pedro Gonzaga, numa filial do supermercado Extra, no Rio de Janeiro. O filósofo e advogado brasileiro Silvio de Almeida, em Racismo Estrutural, faz uma abordagem muito precisa sobre como o racismo permite e conformação de almas com a extrema violência de nossa sociedade, com as balas perdidas, com a ocupação de lugares de não privilégio e com o reforço cíclico da subjetividade coletiva. Este reforço é visto nos episódios de violência contra negros e negras nos estabelecimentos comerciais, onde o serviço de segurança tem uma relação simbiótica com o estado, haja vista que a maioria das prestadoras deste serviço tem ligações estreitas com agentes de segurança pública. Repete-se o tratamento violento e discriminatório dado pelo estado, além de serem tentativa de eximir de culpa os estabelecimentos que as contratam para os serviços de segurança privada. É mais que comum vermos notas de repúdio do contratante e anúncio do encerramento do contrato com prestadora do serviço, quando casos flagrantes são denunciados e exibidos na grande mídia.

Novo Olhar e Potência

Do mesmo modo que é necessária uma mudança de olhar das empresas nos momentos de recrutamento, seleção e promoção de profissionais negros em suas estruturas de RH, é mister que esta mudança de olhar chegue aos seus pontos de venda. Enxergar o negro como um problema é, além de racismo, um ato de desperdício. Segundo pesquisa realizada, em 2019, pelo Instituto Locomotiva, somente as mulheres negras movimentam por ano cerca de R$704 bilhões, são essenciais nas decisões de compra de suas famílias e, nas palavras de Renato Meireles, presidente do instituto, “são um mercado gigantesco, mas estão fora do radar das grandes empresas”. A pesquisa mostra também que os desejos e planos de consumo das mulheres negras estão relacionados à produtos de valor agregado, como veículos automotivos, e lazer, como passagens aéreas.

É mais que sabido que negros são a maioria da composição da população brasileira, perde-se muito ao não focar esforços na comunicação com este público, na contratação de profissionais negros e na construção de estratégias para a equidade racial nas empresas. Tudo porque o Brasil ainda não rompeu com as estruturas do racismo e vê negros e negras como cidadãos de segunda classe e não como potências intelectuais, culturais, econômicas. Para isso, principalmente empresas precisam assumir posturas antirracistas, mudar não somente seu olhar sobre os negros, mas também mudar o modo de trata-los em suas lojas.

Alexon Fernandes

Graduado em Engenharia de Produção e pós-graduado em Gestão Pública . Trilhou seus mais de 20 anos de experiência no mercado corporativo e na administração pública. Coordenou projetos estruturantes, de inclusão social e produtiva para juventude. É um estudioso da questão racial brasileira, principalmente nas relações entre racismo e trabalho. Recentemente, lançou o projeto IDURÁ, onde aborda a participação dos negros no mundo corporativo.

Artigo publicado originalmente em https://www.linkedin.com/pulse/racismo-x-consumo-alexonfernandes/

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