SÓ ACREDITARIA NUM CRENTE QUE SOUBESSE SAMBAR.

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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4 min readMar 9, 2020

Por Eduardo Campos

Imagem: Divulgação

Hoje, quarta-feira, dia 4 de março, uma semana depois do início da quaresma, escrevo este texto sob a atmosfera de uma quarta ainda mais cinzenta. Vivo, de longe, uma rebordosa mangueirense e os efeitos tardios de um fracasso. Assistimos no carnaval a uma Mangueira meio evangélica, com crentes meio sambistas. Um “meio” com um outro “meio” que não davam um inteiro. Logo foi possível arriscar a seguinte razão para o tal insucesso: todo mundo ali estava em um encontro inteiramente pela metade: uma pororoca social hiero-profana.

Aquela situação do sambódromo retratava as alternativas evangélicas que atualmente temos: ou evangélico brega ou evangélico cool. E aquela ocasião, é claro, era mais para o gosto do evangélico cool. Este repete na arte, de certa forma, a mesma coisa que o brega faz na política. Esses crentes, por quererem ocupar tematicamente todos os lugares — com caneta, trombeta ou apito — já não ocupam mais um lugar estranho, próprio, decisivo, silencioso; e o resultado é uma completa confusão sem diferença, sem distinção, sem caráter. A confusão evangélica do sambódromo tem o mesmo empenho da confusão evangélica que toma conta da política brasileira na atualidade, a saber, salvar a identidade do grupo. A única diferença é que uma é o avesso da outra. É a mesma coisa, na verdade, só que do outro lado — uma é a pororoca de esquerda; a outra, a de direita. Mas ambas barulhentas e inteiramente pela metade.

Como assim? Por que essa pororoca social é confusa já que a do fenômeno natural — o encontro do rio com o mar — não apresenta con-fusão? O termo “confusão”, aqui, está sendo usado não com o sentido de fusão de duas partes, mas de estrondo, barulho, balbúrdia. Do tupi poro’roka significa “estrondo”. Trata-se do barulho e da onda gerados pelo encontro violento entre as águas doce e salgada. No carnaval da Mangueira ouvimos esse mesmo “estrondo”, balbúrdia. Mas esse “estrondo” seria transformador? Não é o “estrondo” da gritaria, não é a pororoca do insulto, não é a confusão da provocação ideológica que transformarão o mundo: é a palavra silenciosa: “são as palavras mais silenciosas que trazem a tempestade. Pensamentos que vem com pés de pombo guiam o mundo” (Nietzsche)

Estaria eu aqui falando com alguma pudicícia e repúdio pela mistura sacro-profana vista no sambódromo? É claro que não, de forma alguma! Afinal, rasgou-se o “véu”. Mas há misturas e misturas, e o que decide a qualidade de uma boa mistura é a hora, o tempo e a espontaneidade do acontecimento, causando sempre um estrondo de outra ordem.

De cara, o que tínhamos? A hora do samba! Portanto, gostaria apenas de ter visto um pastor cair no samba, mas não porque fosse pastor, ou porque estivesse investido algum ideal pastoral, mas apenas porque quisesse sambar. Da mesma forma, gostaria de comungar com algum sambista de raiz, apenas pela alegria de tê-lo comigo em um congraçamento eucarístico. Aquela hora mangueirense seria a grande hora de um pastor anônimo apenas colocar a máscara de bufão sem insistir em manter a farsa cotidiana. E porque quiseram apenas o “estrondo” da pororoca social, o samba atravessou! Deixaram de lado a ginga irônica da comunicação indireta, valendo-se do discurso frontal, direto contra a decadente política atual. A ginga indireta do jongo sempre ganhou do jogo direto e reto da valsa, o dois pra lá dois pra cá (O preto sempre pegou o branco pelos flancos!).

Há uma onda de “tudo junto e misturado” que é pura hipocrisia. Na verdade, no meio desse discurso grassam os velhos ressentimentos democrático-políticos desprovidos de qualquer paixão: seja pelo samba ou mesmo pelo Cristo. Esses ressentimentos guardam consigo apenas a paixão morna da “sagrada” política. Como espectador, gostaria apenas de ter visto um sambista legítimo, inteiro. Da mesma forma que, no púlpito ou fora dele, busco um caráter pastoral legítimo, inteiro; o caráter de um pastor que saiba, em tempo, guardar-se para o samba. Busco pastores que não tenham melindres com o carnaval, que não precisam adoçá-lo com um pouquinho de cristianismo para torná-lo palatável nem adoçar o cristianismo com um pouquinho samba para torná-lo cool. O samba sozinho, sem o cristianismo, é o bastante para libertar o cristão de sua dura cintura e de sua dura cerviz. O lema contemporâneo “tudo junto e misturado” pode apenas estar reforçando vícios indentitários e agravando ainda mais o ódio pela identidade alheia.

Aos pastores recomendaria, nesta quaresma, em vez de jejum e oração, apenas aulas de samba, porque deixaram oportunamente de sambar. Aos sambistas, nesta quaresma, eu recomendaria aí, sim, muito jejum e oração, mas para se prepararem melhor para o samba da próxima terça-feira de carnaval.

Nunca fui mangueirense nem outra escola, mas do samba, por vários motivos, sempre fui voyeur. Gostaria então que o mangueirense me ensinasse apenas a sambar, e não me desse a oportunidade inócua de salvar a minha pele de beato.
Diz Nietzsche que “só creria em um Deus que soubesse dançar”. Em Cristo Deus dançou!
Mangueira, mangueira, tem piedade, ensina-nos apenas a sambar!

Eduardo Campos

Doutor em Filosofia (UFRJ), Mestre em Filosofia (UFRJ), Especialista em Filosofia Moderna e Contemporânea (UERJ), Licenciado em Filosofia (UFRJ). Atua como pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicopatologia e Subjetividade (IPUB/UFRJ). Professor do Instituto de Psicologia Fenomenologico-Existencial (IFEN).

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