Sociedade, palhaçaria e teologia

Redação — Mosaico
Instituto Mosaico
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4 min readFeb 22, 2018

Por Bruno Rocha

Toda história tem um ponto de vista. Todo narrador, todo aquele que registra o que ouve e vive, está imerso numa cultura, com valores éticos e morais singulares, histórias e acontecimentos distintos. Não há imparcialidade no que se conta ou transmite. Política, cosmovisão, estética e religiosidade, estão intrínsecas à formação de qualquer informação. Por isso, a necessidade de aprofundarmos e ampliarmos nossa compreensão do que nos forma, entendendo que esse processo é prioritariamente construído através das relações que se dão em sociedade, sem esquecer que até mesmo a mística, o sobrenatural, se estabelece na história.

Stella Penido, ao estudar a obra do teórico Walter Benjamin, nos diz sobre uma linha específica da história que, visa classificar os acontecimentos em certa linearidade, não prevendo as “oscilações” subjetivas dos seres e os diversos pontos de vista que se podem ter de um fato. Ela vai classificar essa linha como “historicismo”, que se caracteriza como um “ideal de pesquisa que pretende escrever a história universal”.

O historicismo baseia sua noção de tempo como uma construção de “quantidades iguais” na medida em que os fatos se dão. Como se tudo fosse bem organizado, separado, verdadeiro ou facilmente classificável. Walter Benjamin critica fortemente essa noção, e acrescenta que essa historiografia está enraizada numa perspectiva burguesa e se constrói na visão dos “vencedores”, e nunca na visão do povo oprimido e marginalizado.

Fazer teologia também é fazer e contar histórias, e esse exercício está intimamente ligado com a produção de uma visão acerca do Sagrado e dos textos religiosos em que se baseiam. Dogmas e doutrinas criados ao longo do tempo formalizam uma visão, muitas vezes única, oficial e na visão dos “vencedores”. Assim, rever a história, a tradição e os estudos exegéticos de forma crítica e histórica é extremamente necessário para novas compreensões de espiritualidades e o que ela pode acrescentar nos dias de hoje.

A América Latina e o dito Terceiro Mundo tem sido palco de um desenvolvimento teológico-social que nasce a partir da pobreza, uma ousada reafirmação evangélica onde Deus, escolhe o lugar da dor e do sofrimento para se revelar ao mundo. Nasce então uma experiência mística que se constrói a partir do pobre e marginalizado, da luta pela libertação e emancipação de todos os seres, e que dialoga com as perguntas e histórias reais e “não oficiais” do povo simples.

Os inúmeros textos e conceitos bíblicos que foram abafados ao longo da tradição, agora, ganham destaque e novas compreensões para a vida comum. Longe dos dogmas e doutrinas, abre-se espaço para a pluralidade da ação de Cristo em nós, e nós como “Cristos”, de promover ações de justiça e plenitude em todas as esferas.

A linguagem e o arquétipo poético e real do palhaço está totalmente alinhada com a mística teológica dos que são pobres, dos que choram e dos perseguidos em nome da justiça do Reino. A palhaça e pesquisadora Bete Dorgan diz que “a máscara do palhaço é o arquétipo da queda do ser-humano. É o grande arquétipo daquele que não sabe, daquele que cai. Daquele que está eternamente numa condição de inadequação”.

O palhaço é um ser errante. Ele é aquele que não consegue acertar da maneira que deveria. O palhaço é pobre, não apenas financeiramente como sua história nos diz, mas interiormente. A diferença é que ele entende sua condição, e assim, se torna bem-aventurado, feliz em saber que nada lhe esperado além da pobreza e da luta que essa o chama. A beleza de suas ações se dá explorando a contrariedade daquilo que não é olhado como riqueza ou virtude. Assim, da falta, surgem as melhores gambiarras; da escassez as melhores improvisações; das tragédias, os maiores exemplos de compaixão e união; e da pobreza, a compreensão de um Deus presente e perto.

A ação profética do palhaço reconhece o lugar histórico de onde se fala, entende a farsa do mundo “rico” e conclama a todos e todas uma ação prática de insurgência política, autoconhecimento e verdade, diante de uma sociedade desigual e mentirosa. Assim, a mística teológica da pobreza nos chama à essa busca “clownesca”, onde o teórico Jacques Lecoq vai dizer que “a procura do seu próprio clown (palhaço), é primeiramente a pesquisa da sua própria mediocridade (lugar-pobreza)” e que o ator “através desse fracasso, desvenda a mais profunda natureza humana (mística-Reino) que nos emociona (empatia) e nos faz rir (justiça plena)”.

Bruno Rocha é palhaço, professor e pastor. Formou-se em bacharel em Teologia (FTBSP) e atualmente cursa Teatro (IFF). Seus temas de reflexão são: arte, educação, teologia da libertação e palhaçaria.

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