Todo mundo era Deus — Colonização e aculturação

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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4 min readMay 21, 2018

Por Bruno Rocha

Foto: Odan Jaegem, Pato Branco, Brasil. Behance

“Dizem que o diabo veio nos barcos dos europeus
Desde então o povo esqueceu
Que entre os meus, todo mundo era Deus” (Emicida)

Desde a primeira vez que ouvi esse verso, fui impactado pelas verdades proféticas ali contidas. O rap, na voz de Emicida, ganha uma força ancestral e espiritual própria da cultura africana, capaz de influenciar a todos e todas que deixam ser tocadas por esse ritmo e letra. Mas, cito essa frase para falar de uma outra cultura também matricial e de extrema importância para a formação do povo brasileiro: os indígenas.

Muitas são as tribos, os povos, as origens, os costumes, os acessos ao Sagrado desse povo originário. Sendo impossível, portanto, generaliza-los como se houvesse uma única cultura, um único estereótipo ou arquétipo possível do ser indígena. Desde sua origem, o sistema colonizador estabelecido também pela educação catequética europeia em solo brasileiro, contribui com a alienação e descaracterização dos povos pré-brasileiros que já habitavam essa terra.

Não se pretende aqui a construção historiográfica, mas algumas considerações sobre como o processo de aculturação linguística e evangelização pode ter contribuído para a perda de identidades ancestrais e a construção de paradigmas de fé e espiritualidade violentas para um povo não cristão e que depois, pelo processo colonial, vai se torna brasileiro e cristão.

Começo citando Alfredo Bosi, que no livro Dialética da Colonização, no capítulo “Anchieta ou as flechas opostas do sagrado”, constrói a ideia de que a aculturação linguística proposta por Anchieta em seus contos, poesias e peças teatrais, traz, através desse processo de colonização, marcas profundas no ethos indígena. Nas palavras de Bosi “O projeto de transpor para a fala do índio a mensagem católica demandava um esforço de penetrar no imaginário do outro”.

O empenho desse primeiro missionário europeu é um grande exercício de tradução de si, de suas verdades, de sua língua, de sua cultura e cosmovisão, na busca de condenar, negar e invadir o “imaginário do outro”. Anchieta, em suas traduções religiosas para as línguas nativas (tupi), num processo de extrema violência, enxerta na construção simbólica e linguística dos povos indígenas novas palavras, significados e reflexões de um mundo ocidental e europeu.

Anchieta constrói um novo vocabulário e, quando não estupra a “gramática tupi” com palavras de sua própria língua, cria suas correspondências como Pai-guaçu, para Bispo, Tupansy, para Nossa Senhora (mãe de Tupã), Tupãretama, para reino de Deus, Anhanga, para Demônio, entre muitas outras. Através da imposição arbitrária dessa “teofagia” linguística/europeia e suas correspondências absurdas e violentas para com outra organização espiritual e social, cria-se uma nova forma de conceber o sagrado, principalmente para o indígena. Como, então, conceber a “equação Tupã-Deus judeu-cristão”? Isso tudo nada mais é que um tipo de sincretismo compulsório e hostil da língua e da espiritualidade.

Esse processo de colonização e aculturação é problemático, e até hoje se mostra vivo quando se vê, por exemplo, um ex-pajé e ex-xamã, de terno e gravata dentro da floresta, segurando uma bíblia, e gritando “glória Deus” em um culto neopentecostal. A questão não é a conversão para outros caminhos de espiritualidade, mas como essa se dá, mediante à quais violências e discursos negativos de cultura e de fé.

Há nesse processo colonial um desmantelamento do núcleo sagrado indígena, assim, “perde-se a unidade fortemente articulada que mantinham no estado tribal, e reparte-se sob a ação da catequese”. Essa ação truculenta, arbitrária e violenta não leva em conta a comunidade local e suas experiencias identitárias que os faz ser povo.

O pensamento maniqueísta é instalado na cultura através da “demonização” dos ritos, costumes e cultos. O catequista “exorciza” tudo aquilo que não é bom, tudo que seja obra de “Satanás”, fazendo ser necessário que o indígena renuncie suas práticas em nome da religião de seu colonizador.

A dramatização dos autos religiosos e o letramento, foram uma das ferramentas que o colonizador usou como controle e pulverização dos símbolos e significados ancestrais para uma nova concepção católica-europeia de mundo. É necessário resgatar o valor dos comportamentos espetaculares (rituais, danças, festas e representações) e práticas espirituais (curas, cultos, orações e transes) próprias desses povos originários (indígenas e africanos).

As analogias e significados “demoníacos” designados à cultura indígena, mataram e matam, oprimiram e oprimem a experiência subjetiva de ser povo. Em relação à arte, por exemplo, Alfredo Bosi diz que a produção teatral de Anchieta estava imbuída desse maniqueísmo doutrinário: “compreende-se, nesse contexto, a escolha do diabo como protagonista de tantos autos”.

Entende-se por fim que, o processe de aculturação linguística e doutrinária foram responsáveis pela construção histórico-religiosa e cultural, de símbolos e relações sociais do que hoje se entende povo brasileiro. Se existe intolerância e violência constituída na gênese da cultura “verde e amarela”, pode-se primeiramente compreender esse processo e posteriormente desconstruir alguns ranços, descolonizando nossa língua, espiritualidade e arte. Para que não esqueçamos, como disse Emicida, que entre os nossos (indígenas e africanos, mas também europeus), de diversas formas e maneiras, todos tenham a possibilidade de ser e de portarem Deus, Deuses e Deusas.

Bruno Rocha é palhaço, professor e pastor. Formou-se em bacharel em Teologia (FTBSP) e atualmente cursa Teatro (IFF). Seus temas de reflexão são: arte, educação, teologia da libertação e palhaçaria.

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