UMA HERMENÊUTICA A PARTIR DO POVO

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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4 min readJul 12, 2018

Por Bruno Rocha

Oração da Manhã — Capela da Casa de Dom Pedro Casaldáliga

Fazer hermenêutica a partir das histórias do povo não é invalidar os textos sagrados, nem mesmo promover um “desmonte” das verdades ali contidas ou mesmo anular a revelação bíblica personalizada em Jesus. Pelo contrário. Ela potencializa o valor do texto e traz a beleza da relação de Deus com o ser humano, que é povo. Quando nos deparamos com um Salmo, por exemplo, que tem empatia com a nossa dor; ou mesmo uma recomendação de Paulo aos irmãos e irmãs daquele tempo, que tanto renovam a nossa esperança e os princípios inegociáveis de amor, justiça e libertação de Cristo, vivemos na pele e sentimos na alma a inspiração divina contida nas histórias e nos relatos daqueles que viveram uma Experiência mística e divina libertadora.

Não há necessidade de abandonar esse texto Sagrado tão rico e espiritual que é a Bíblia, mas sim proclamar independência às interpretações conservadoras e literalistas que servem à preservação e o funcionamento de morte que a religião promove aos humildes, pobres e minorias do nosso tempo.

É imprescindível reconhecer a sacralidade popular de outros textos, relatos e histórias tão espirituais e que também trazem vida ao ser-humano. Não se pode estar preso à conceitos totalmente contextuais, ligados a realidade e o que se acreditava naquele momento a respeito de Deus e da sociedade. Lembrando que, a Bíblia nos revela muito a respeito do jeito que aquelas pessoas criam sobre Deus, suas verdades advindas do relacionamento e suas experiências pessoais sobre o transcendente, e não quem Deus é de fato.

Ele está além de qualquer relato, mesmo bíblico. Num simples raciocínio de que nós não temos controle ou conhecimento preciso a respeito de quem é o ser de Deus e o que Deus faz (temos apenas sombras e opiniões), a visão que temos dele sempre está condicionada ao contexto e às nossas experiências e limitações, e que também podem sim se confundir entre delírios e acertos. De Abraão ao apóstolo João, da comunidade primitiva até o Concilio de Nicéia, de Constantino até nós, existem milênios de pensamento e manipulação teológica a respeito do ser de Deus.

A imagem sobre o “ser de Deus” mudou e continuará mudando com as variadas experiências de Deus que o homem e a mulher ainda tiverem em suas histórias.

O que torna o texto sagrado é a mão que o escreve, o coração que o revela, o corpo que vive o acontecido e a experiência de fé que é intransferível e individual/comunitária. Mas é claro, tudo tem o direito de ser problematizado e questionado, o que não se tem o direito de fazer é anular ou descreditar a história e a vivência espiritual de alguém. Questiona-se o caminho que foi percorrido, como a experiência se deu, quais as referências, mas nunca a validade da experiência de quem a conta. As histórias precisam ser respeitadas e zeladas numa perspectiva pluralista. E essa não é uma visão romântica do ser-humano, como se nós portássemos toda a compreensão fidedigna do “ser sagrado”, ou como se Deus estivesse refém de nós, de nossas estórias, para poder se revelar. Mas sim, essa é a visão de uma teologia humana, feita por humanos e para humanos, sob a direção de um Deus que também é humano.

Os erros que nós comentemos e continuaremos a cometer ao longo da história não desqualifica aquele que contará sua história com Deus. Ser santo, ser sagrado, contar uma história que revele a sua relação com Deus, não exime ou precisa esconder nossos pecados e falhas. Sobre isso, a Bíblia está repleta de atrocidades, erros e mazelas dessa peregrinação humana e terrena ao lado do Sagrado. Um relato que mostre o pecado não o torna profano, menos sagrado ou privado de sua inspiração divina.

As histórias possibilitam novos caminhos de um entendimento mais amplo sobre a sociedade, sobre Deus e sua atuação entre os homens e mulheres. Pois elas são vivas, estão acontecendo no aqui e agora, sem regras ou roteiros. Elas apenas se dão e são ao longo da vida. Se tornam testemunho vivo de que Deus ainda fala e aparece nos lugares mais ermos e difíceis, de que Ele age em favor e pelas histórias. E tudo isso porque Ele ama, e sendo o Senhor e Senhora da História e das Estórias, nos chama para que juntxs, possamos construir mais livros sagrados, com vidas e histórias sagradas, para revelar mais de Deus a homens e mulheres sagrados, criados à sua imagem e semelhança.

Bruno Rocha é palhaço, professor e pastor. Formou-se em bacharel em Teologia (FTBSP) e atualmente cursa Teatro (IFF). Seus temas de reflexão são: arte, educação, teologia da libertação e palhaçaria.

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