UMA PEQUENA LUZ

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
Published in
4 min readMay 8, 2018

Por Marcelo Santos

Foto: Marcelo Santos

Cortaram a energia na Ocupação Vitorino Camilo, na zona oeste de São Paulo. Era fim de tarde de sexta feira quando a companhia de luz interrompeu o serviço no prédio onde moram 39 famílias. Pouco antes, a Polícia visitou o local. Avisaram sobre uma reunião nos próximos dias. Que não poderão continuar ali.

Reflexo dos dias. Basta abrir o noticiário ou ligar a tevê. Os movimentos de luta por moradia foram rapidamente culpabilizados pela tragédia do dia 1 de Maio, quando o prédio Wilton Paes de Almeida, de 24 andares, derreteu em cenas dramáticas e cinematográficas em pleno Largo do Paissandu, centro histórico da cidade de São Paulo.

A ordem atual é desocupar. Arrancar do útero de concreto dos mais de 70 prédios ocupados da cidade, centenas de famílias. Gente idosa, crianças pequenas matriculadas nas escolas da redondeza, doentes, trabalhadores, desempregados e muitos refugiados, como a haitiana Ketia Badeaou, de 25 anos, e sua filha Isabel.

Crente, presbiteriana, ela vive na ocupação há dois anos. Sua casa, desde que deixou para trás o caótico cenário do país onde vivia e congregava numa igreja evangélica. Trouxe ao Brasil sua filha e o gosto pelos louvores.

Foi a fé que reuniu um grupo de cristãos, ligados à Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, na última sexta (4), para um ato contra a criminalização da pobreza e em solidariedade aos trabalhadores sem teto e movimentos de moradia.

Cerca de 40 pessoas se reuniram, iluminadas apenas pelas luzes das lanternas dos celulares. Junto com moradores do local realizaram um culto onde oraram, choraram e cantaram.

Anivaldo Padilha, um dos coordenadores da Frente, lembrou que o Deus revelado na Bíblia não é imparcial. Ele tem um lado e seu lado é o dos que sofrem. “Basta olhar toda a trajetória do povo hebreu, desde sua escravidão no Egito até o momento do ministério de Jesus. Uma trajetória de conflitos entre os poderosos da época e os profetas”. Sob a fina luz do aparelho celular, ele continuou. “Jesus vem dessa tradição profética. De confrontar os poderosos. De luta permanente. Tanto que, quando inicia seu ministério, ele proclama: ‘O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para pregar boas novas aos pobres. Ele me enviou para proclamar liberdade aos presos e recuperação da vista aos cegos, para libertar os oprimidos’”, disse, ao citar o texto do evangelho de Lucas 4:18.

Foto: Marcelo Santos

A corajosa paraibana Antonia Serafim Rodrigues, a Toninha, responsável pela ocupação da Vitorino Camilo, que foi batizada com o nome da ex-primeira dama, Marisa Letícia, fraquejou a voz após cantar que “Àquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do Senhor Onipotente, descansará”. Ela pertence ao Movimento de Moradia Famílias Independentes (MMFI) e estava abatida após dias de tantas lutas e tantas dores. Não conseguiu segurar as lágrimas. “Tanta gente batalhou tanto e perdeu tudo ali”, lamentou Toninha. Evangélica, vinda de uma família pentecostal, ela cansou de frequentar uma grande igreja do centro da cidade após ouvir, por diversas pregações, xingamentos contra os mais vulneráveis. “Vou continuar indo para ouvir a pastora dizer que somos vagabundos e que não prestamos? Vou continuar sendo ofendida assim? Minha igreja, hoje, é essa Frente de Evangélicos.”

Tinha tudo para ser uma noite triste. Mas diante da solidariedade, do companheirismo de cristãos de diferentes denominações (presbiterianos, metodistas, batistas, assembleianos entre outros), todos irmanados na convicção de que consolar os que sofrem é uma causa em comum, uma pequena luz brilhou. Ali, ao menos, ninguém vai chorar sozinho.

Marcelo Santos é jornalista e escritor. Escreveu para as principais publicações evangélicas brasileiras. Atualmente trabalha como ghostwriter e escreve reportagens para publicações do SESC e da Rede Brasil Atual. É pai de Guilherme, Caio e Gustavo.

--

--