UNESCO, EUA, ISRAEL e esse tal de ‘viés’

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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5 min readOct 31, 2017

Relações Internacionais

Dia 12 de outubro administração de Trump decidiu se retirar da UNESCO (Agencia da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura) alegando que a agência tem um viés anti-israel. O primeiro ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, disse que a UNESCO se tornou um teatro do absurdo[1] e que a agência está distorcendo a história. Eu me lembro também de ver Netanyahu dizer que se importava mais com os palestinos do que seu próprio povo (depois de algumas acusações por parte do Estado de Israel a ONU e Visão Mundial em Gaza).[2]

Esse é o discurso: Israel e Estados Unidos, juntos contra o terrorismo e o mal no mundo. Se o messias veio ou não, pouco importa. O que importa é que Israel e Estados Unidos salvarão o mundo e a humanidade.

Israel: a única democracia do Oriente Médio, o Exército mais moral do mundo. Como poderia alguém ser “anti Israel”? Esse mundo deve estar louco mesmo! Devem ser todos pró terroristas ou algo assim!

Será?

Eu estive na Palestina, na cidade de Hebron (que é citada diversas vezes por Israel) como observador de Direitos Humanos, observando e relatando toda e qualquer violação de direitos humanos e, curiosamente, o que eu vi foi algo bem distinto desse discurso estadunidense.

A cidade foi ocupada por Israel em 1967, e desde 1997 foi dividida em dois setores: H1 e H2. H1 é administrado pela Autoridade Palestina, e vivem lá cerca de 690 mil palestinos e palestinas.[3]

Em H2 estão a mesquita e a sinagoga, a Tumba dos Patriarcas.

A mesquita foi dividida após o massacre de 1994, quando Baruch Goldstein a invadiu, matando dezenas de palestinos e deixando centenas de feridos. Disso resultou a resolução 904 do Conselho de Segurança da ONU[4], que, dentre outras consequências, fortaleceu as restrições para o acesso à mesquita, criando uma sinagoga.

Caso não tenha ficado muito claro, isso significa que os israelenses invadem o território, matam e ferem palestinos e, como resultado disso e resposta para, teoricamente, aumentar a segurança do local, continuam a dividir o território palestino e dar parte a colonos israelenses. A situação da mesquita é um exemplo de como é injusta a extorsão de territórios dentro da Palestina. Mas me diga o que esse viés “anti israel” que os Estados Unidos falam?

Vale ressaltar que a ocupação de Hebron por israelenses é ilegal desde sempre. Em nenhuma divisão feita sob tutela do direito internacional Hebron entra como parte do território israelense. Recentemente, inclusive, colonos israelenses têm entrado cada vez mais em Hebron, tomado casas[5] dentro da cidade. A intensão do Estado de Israel é legalizar esse tipo de desapropriação de território e casas palestinas para moradia e ocupação israelense.[6]

É a única democracia do Oriente Médio? Como assim? Qual é esse viés?

H2, por outra parte, é o local onde vivem cerca de 32 mil palestinos[7] e palestinas, e cerca de 850 colonos israelenses, guardados por cerca de 2500 soldados. Existe praticamente 3 soldados para cada colono israelense.

Percebem como Hebron é um local especial?

Assim o é em virtude, principalmente, do histórico religioso importante para ambos os lados. Além de ser o único local na Cisjordânia em que os assentamentos ilegais são urbanos, por isso a divisão em H1 e H2.

Dentre as infinitas consequências da ocupação e do massacre da Tumba do Patriarcas[8], está o fechamento da rua mais importante do comércio de Hebron: Al-Shuhada Street, nome árabe.

Minha principal função durante o tempo que estive lá era observar, tirar fotos e registrar a frequência dos estudantes da escola, quantas professoras passavam pelo checkpoint (local de checagem e vistoria de pessoas palestina por soldados israelenses), quem era vistoriado, de que forma o era, assim como demais abusos de direitos humanos.

A principal escola que monitoramos era a Córdoba, escola de ensino básico e fundamental em que crianças palestinas entre 5 e 13 anos estudavam. Essa escola fica na famosa “Al-Shuhada Street” que agora faz parte do H2, localizada em frente a assentamentos ilegais israelenses. O acesso à rua pela Bab-Al-Zawiya — região central da cidade, de grande concentração de comércio e praticamente divisa entre área H2 e H1 — é feito por dezenas de crianças todos os dias e, para isso, é necessário cruzar o checkpoint 56 que ficou famoso e foi declarado, no período em que eu estava lá, “zona militar fechada” — “Closed Military Zone”. Isso aconteceu depois que Leme, meu colega brasileiro que também esteve lá como observador dos direitos humanos, fotografou, no dia 25 de setembro de 2015, o assassinato de Hadeel al-Hashlamon[9] — local pelo qual professoras, crianças e residentes passam todos os dias. (Nota: no espaço de 500 metros, as crianças e professoras passam por 2 checkpoints: o 56 e o 55. Isso significa que crianças palestinas entre 5 e 13 anos passam por soldados israelenses altamente armados todos os dias para irem à escola).

Agora os Estados Unidos dizem que existe um viés ‘anti Israel’?

É necessário lembrar que os EUA, ainda que tenham voltado à UNESCO em 2002, em 2011 deixaram de pagar suas taxas anuais — mais de 80 milhões de dólares, que correspondem amais de um quinto do orçamento geral da UNESCO — em protesto contra a decisão do grupo de admitir a Palestina como membro[10].

A verdade é que querem apagar narrativas, histórias, pessoas, uma nação. Enquanto vemos Estados Unidos e Israel gritarem aos quatro cantos sua bondade, benevolência e desejo por justiça e protestarem em favor da ‘justiça’, os Palestinos continuam apagados, sem voz e, portanto, sem direitos.

Se esse é o viés ‘anti israel’ alguém pode explicar quais são os outros?

[1] https://www.theguardian.com/world/2017/oct/12/us-withdraw-unesco-december-united-nations

[2] https://www.timesofisrael.com/netanyahu-claims-to-care-more-about-palestinians-than-their-leaders/

[3] Dados de 2016 The Palestinian Bureau of Statistic

[5] http://www.dailymail.co.uk/wires/afp/article-4729660/Israeli-settlers-occupy-disputed-building-Hebron.html

[6] http://www.independent.co.uk/news/world/middle-east/israel-hebron-new-settler-housing-old-city-palestinians-west-bank-occupied-unesco-a8003346.html

[7] Dados de 2016 The Palestinian Bureau of Statistic

[8]http://www.jpost.com/Arab-Israeli-Conflict/This-Week-in-History-Jewish-settler-massacres-Palestinians-in-Hebron-mosque-446253

[9] https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N94/139/85/PDF/N9413985.pdf?OpenElement

[10] https://news.nationalgeographic.com/2017/10/united-states-us-withdraw-unesco-world-heritage-spd/

Manoel Botelho. Foi observador de Direitos Humanos nos Territórios Palestinos Ocupados. É professor e coordenador internacional na Faculdade Paulista de Pesquisa e Ensino Superior (FAPPES)

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