VENTO VENTANDO 2021

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
Published in
4 min readJan 4, 2021

Por Valdemar Figueredo

Foto: Divulgação

Comecei o ano de 2021 lendo as primeiras obras publicadas de Mario Quintana: A rua dos Cataventos (1940), Canções (1946) e Sapatos floridos (1948). O poeta nasceu em Alegrete, Rio Grande do Sul, no ano de 1906. Essas datas e paisagens nos dão uma falsa impressão de distância. O poeta morreu em 1994, enquanto a sua poesia fertiliza nossa imaginação nas primeiras horas do novo ano.

A primeira decisão difícil: ser ou não ser cerimonioso com o papel em que está impressa a prosa poética do Quintana? Sendo mais específico, escrevo no livro, grifo com lápis de cor os versos preferidos?

Olhando a foto do autor, compreendo a mensagem: o livro é imaterial. Não confundir a brochura com a obra literária. Não devo tratar a minha biblioteca particular como se fosse um patrimônio que deixarei para os meus filhos. Para conversar com Quintana preciso me desapegar do material com potencial de venda para mergulhar nas ideias atemporais.

Quintana pisca os olhos e libera: escreve, borra, pinta e desenha porque é um livro! Não o trate como uma relíquia de cristal posta na cristaleira apenas para ser vista, admirada, cobiçada ou elogiada. Eu quero uma poesia pessoal prosaica e não a poesia deixada abandonada na cristaleira com ares de raridade.

A vida é para ser vivida. Pinta, borda, borra, escreve, apaga, desenha, dobra, rasga, cola… Página virada é vida vivida. Página em branco, por favor, sejamos criativos!

Minha caneca de café de todos os dias é mais representativa do que a taça de cristal que deixo no alto fora do alcance das crianças. Cerimonioso com o artefato caro, descubro que o objeto não desfruta dos meus afetos, apenas dos meus cuidados. Quanto a minha caneca com as suas avarias…

Seja na Canção de bar (p. 38), Canção da janela aberta (p. 50) ou Canção do amor imprevisto (p. 60), o fazer poético não é propriamente o que se escreve ou se descreve. A poesia está no olhar. A sensibilidade para perceber as sutilizas do cotidiano. Vê com poesia antecede o trabalho manual da escrita.

Viva a vida livre da justa forma. Poesia na forma é tão óbvia quanto vida na forma.

Vê com poesia é viver falando sozinho enquanto caminha na praça da pequena cidade ou na mesa no fundo do bar. A caninha pode ser pura, a poesia, não (p. 39). O poeta pode ficar só, solitário, não. Habitado por mundos e afetado por pessoas. A poesia é uma maneira, necessária, disfarçada de suspirar… (p. 84).

Não é simples ser simples.

A escrita do Quintana é de rara sofisticação porque é simples. No poema Sinais dos tempos (p. 99), ele diz que o ambiente religioso busca promover com técnicas o sobrenatural. Não é possível ser simples quando nos deixamos fascinar pelo espetacular e perdemos a capacidade de contemplar o cotidiano com olhos poéticos. No mundo da técnica, o ser simples é considerado heresia. “Por causa dos ilusionistas é que hoje em dia muita gente acredita que poesia é truque […] (p. 87).

Por causa dos ilusionistas é que hoje em dia muita gente acredita que culto é truque.

E por falar em técnica, truque e religião, pensemos no exegeta. Para Quintana, o poema é o poema. “O que quer dizer esse poema? (p. 117). Os que se arriscam para extrair os sentidos últimos e absolutos dos poemas deveriam primar pela simplicidade e acreditar no poeta. A pretensão de interpretar poemas sutis a fim de transformá-los em textos objetivos diz mais do exegeta do que do poeta.

Que o vento ventando nos leve, leves como a jangada, para novas praias. Que o vento ventando nos abrande tanto que recuperemos a capacidade de notar “jogos de luz dançando na folhagem! (p. 189). Sim, com o passar das horas quotidianas, tanto a luz do dia quanto a luz da noite oscilam, e só no modo simples podemos perceber.

Beijos e fique na Paz!

Referência bibliográfica

QUINTANA, Mario. Canções seguido de Sapato florido e A rua dos cataventos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012

Valdemar Figueredo

Editor Instituto Mosaico, professor universitário e pastor deslocado. Leciona nas áreas de ética e política. Na periferia atento à espiritualidade prosaica.

--

--