Violência simbólica contra a mulher

Redação — Mosaico
Instituto Mosaico
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4 min readFeb 7, 2018

Por Carolina Bezerra de Souza

Esses dias, pretendendo verificar depoimentos dos machismos que as mulheres ouvem/vivenciam em suas igrejas, deparei-me, de novo, com uma publicação da página do Facebook do grupo Evangélicas pela Igualdade de Gênero. Lendo os depoimentos na página e nos compartilhamentos, lembrei de uma ideia colocada no documentário “She’s beautiful when she’s angry”: o cotidiano é político. Aquilo que achamos que faz parte do nosso dia a dia individual, das relações diárias, que vemos e ouvimos, se configura político.

No caso das mulheres, as limitações que são colocadas em nossa vida e os discursos que ouvimos se juntam a uma vasta rede de exercício de poder sobre nossos corpos e condutas que tem o objetivo de manter a dominação dos homens e seus privilégios. Essa rede impede a participação das mulheres nas decisões sociais, minimizando seu papel. Esse formato de discursos sobre o corpo, o trabalho e o papel social das mulheres é uma constante nas igrejas e tende a ficar mais forte nesse período de pânico moral em que vive a sociedade brasileira.

Lendo aqueles depoimentos, reconheci muita coisa que eu já ouvi na igreja direcionado a mim e também a outras. Não pretendo reproduzir aqui tudo o que li e escutei. Os que foram publicados no grupo citado, fica fácil ler, mas outros são oriundos de aconselhamentos, atendimentos e assessorias, e não é possível compartilhar aqui. No entanto, gostaria de citar alguns lugares comuns desses discursos e renomear essas condutas para deixar claro o que elas significam. Todas podem se enquadrar na descrição de violência simbólica, pois conduzem as mulheres a incorporar classificações que não são naturais, mas que a sociedade naturaliza induzindo assim homens e mulheres a uma avaliação distorcida do papel da mulher. Observe como os problemas dessas falas se tornam ainda mais evidentes:

1) A mulher deve ficar em casa cuidando da família, ser responsável pelo trabalho doméstico, podendo trabalhar fora apenas se o marido permitir — hierarquização do ser humano e divisão sexuada do espaço, ou seja, a mulher não tem acesso a todos os ambientes sociais. Divisão sexuada do trabalho, pois ainda que ela tenha a competência necessária, não tem acesso facilmente a todos os postos de trabalho. Violência patrimonial, pois ao restringi-la apenas ao espaço doméstico, explora seu trabalho e impede que ela desenvolva ou seja responsável pelo seu patrimônio, o que a torna sempre dependente.

2) A mulher deve ser submissa ao marido e deve permanecer calada — hierarquização, silenciamento e violência epistêmica. Aquilo que a mulher pensa e sabe é desvalorizado como conhecimento em comparação com o que os homens dizem.

3) A mulher é propriedade do marido — objetificação/desumanização da mulher.

4) É da natureza da mulher casar e ser mãe — naturalização da divisão sexuada do espaço, do trabalho e dos papéis sociais que ignora a capacidade de decisão da mulher.

5) A mulher não pode usar roupas que mostrem seu corpo, pois seduzem os homens — controle de corpos que colabora com a culpabilização da mulher por um problema que não é dela.

6) A mulher tem que ser feminina, delicada e recatada. Não pode estudar muito e nem se envolver com política — Controle de corpos, limitando as formas de ser mulher. Violência epistêmica, impedindo o desenvolvimento intelectual. Novamente, temos a divisão sexuada de trabalho e a inferiorização da atuação feminina, inviabilizando qualquer mudança, pois impedir a participação política é uma forma de manter as coisas como estão.

7) A mulher dotada de carisma não tem possibilidade de exercer cargos eclesiásticos (vulgo “se você fosse homem te consagraria pastor/diácono/presbítero”) — hierarquização, silenciamento, ocultação do trabalho feminino e inferiorização da atuação feminina.

8) A mulher precisa ser disciplinada pelo marido — violência física (psicológica ou patrimonial) e controle de corpos.

9) A mulher não pode negar sexo para o marido hora nenhuma, mesmo que não esteja com vontade ou esteja cansada, pois o que ele não encontra em casa vai procurar na rua — violência sexual e objetificação.

A partir dessa forma diferente de entender palavras e frases cotidianas que nós ouvimos de outras mulheres, de homens e líderes na igreja e fora dela, fica claro, novamente, que mesmo com cristianismo, precisamos de feminismo

Carolina Bezerra de Souza é cristã, brasiliense, com metade do coração em Recife e um pé em Curitiba. Doutora e mestra em Ciências da Religião, bacharel em teologia e engenheira eletricista. Trabalha as temáticas de gênero, textos sagrados, movimentos populares e espiritualidade.

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