1984 ou 2021?
Como a Pandemia e o (des)governo de Jair Bolsonaro aproximam-nos cada vez mais ao cenário caótico de totalitarismo e abuso de poder criado por George Orwell
O livro “1984”, de George Orwell, é um fenômeno. De tempos em tempos, conforme acontecimentos escandalosos desestabilizam a sociedade, a obra aparece nas listas de mais vendidos em todo o mundo ocidental. Como exemplo emblemático, em 2013, quando Edward Snowden revelou episódios de espionagem de cidadãos americanos pelo governo, lá estava ele em um pico de vendas[1]. Posteriormente, em 2017, quando Donald Trump e sua equipe contestaram continuamente relatos da imprensa, principalmente no que concernia às eleições presidenciais, “1984” novamente dominou as livrarias[2]. Não coincidentemente, em 2021, quando se alastrou no cenário global a pandemia de Covid-19 e se robusteceu, especialmente no Brasil, uma vertente política de extrema direita, o livro, que se tornou domínio público, teve um aumento de vendas de mais de 600%[3]. Mas o que teria de atual um livro distópico escrito em 1948? O mundo que o autor criara de fato está se concretizando?
Para responder tais perguntas, primeiro há de se relembrar sinteticamente sobre o que o livro trata. Orwell, nesta obra, conta a história de Winston, um cidadão de uma nação regida por um poder soberano totalitário, o Grande Irmão. A partir disso, discorre sobre uma variedade de assuntos que pareciam, à época, potencialmente perigosos ao futuro. A criação de um inimigo comum, o poder da linguagem, o controle de informações, o abuso do uso de tecnologias para controle da população e a vigilância contínua, por exemplo, são temas marcantes na leitura. Indubitavelmente, para qualquer um que esteja a par das notícias, que cotidianamente nos decepcionam, estes persistem como temas motivadores de preocupação.
Mais de 500 mil mortes no Brasil desde que o vírus aqui se espalhou[4]. Um presidente que não mostra empatia ou ações concretas de contenção[5]. Jair Bolsonaro, nesse momento tão delicado, se esforçou sobretudo para dividir o país sob um falso pretexto de nacionalismo[6]. Levantar bandeiras nacionais no dia 7 de setembro como ato político só nos mostra o quão distorcida está a visão das pessoas acerca do que é ser brasileiro, do que é governar para todos. Se a minha bandeira é tomada pela extrema direita, me sobra o quê, como cidadã que não se identifica nessa ideologia? Por que, acredite ou não, a maioria dos brasileiros também não se identifica assim, na verdade, menos de 30% se declara como tal[7]. Pois bem, sobra um inimigo comum, assim como em “1984”. O interessante é a dificuldade de se identificar esse adversário, tal qual no livro. Não se engane, o coronavírus não é entendido como um problema por todos. É a esquerda? É a direita? Os governadores? É a classe política no geral? Não, são os estrangeiros. Ou os chineses e suas tecnologias? Fato é que essa confusão polarizada de ideologias serve a seu propósito: distrair. E assim a boiada passa[8]. Bem como no livro, todas as atrocidades se dão despercebidas pela massa. Quem é “o outro” não importa, apenas a guerra perene, a manutenção de um adversário comum — que sequer precisa ser identificado.
No meio tempo, a opinião pública é moldada. Nas redes sociais, a desinformação. Conforme relatório final da CPI da Pandemia, o presidente e sua família comandariam uma “organização oculta e complexa” que espalha fake news pelo Brasil[9]. Como o presidente de um país é acusado de piorar a crise sanitária provocada pela pandemia, através de uma campanha de desinformação pelas redes sociais? Como sai ileso por utilizar seu importante papel de influenciador da população para disseminar tratamentos ineficazes[10] e mentiras desmoralizantes[11] acerca de um vírus que já tirou a vida de tantos brasileiros? Talvez não exista aqui um “Ministério da Verdade” tão institucionalizado como na obra de Orwell, mas o quão distantes estamos de tê-lo? Cada vez mais os fatos se tornam maleáveis e a ciência é desacreditada. Nossa história, reconstruída. Seja banalizando as mortes[12], aclamando os tempos de ditadura e tortura, ou mesmo incitando novos golpes[13]. Que jeito melhor de utilizar o poder da linguagem, das informações e das tecnologias para satisfazer os próprios interesses? Cultiva-se, assim, a alienação e o analfabetismo político em considerável parcela da população[14], incapaz sequer de notar um problema nesse processo.
O que conclui-se disso? Estaria Bolsonaro se tornando uma espécie de “Grande Irmão”? A resposta é clara: não. O cenário é muito mais preocupante. O ditador, no livro, mais que tudo, era um símbolo. Quiçá sequer existisse, era apenas a imagem de seu poder que dava força ao sistema. No Brasil, Bolsonaro não tem poder, tem audácia. Com níveis de rejeição crescentes, que passam os 60% da população[15], ele constantemente ameaça o sistema e sua estrutura. Expulsa ou torna impossível a permanência dos que pensam de forma contrária a ele dentro do governo, dos que apresentam qualquer resistência[16]. Diferentemente do Grande Irmão, ele não conseguiu se fazer temido, onipresente e onisciente. A questão é que ele consegue vender uma imagem de “única via possível”, utilizando a polarização a seu favor, como o fez nas eleições e como continua fazendo[17]. Talvez o questionamento aqui não seja “1984 ou 2021”, como propus no título, mas sim “1984 ou 2022?”, o ano das próximas eleições presidenciais. Nesse período, decidiremos como nação qual futuro queremos seguir e estabelecer no nosso país. Daremos continuidade a essa cópia mal feita da “Oceania” de “1984”, com um líder que é sobretudo inseguro e manipulador, que, sem conseguir poder, age impulsiva e desastrosamente? Sinceramente, espero que não.
[1]MATOS, Thais. ‘1984’ e ‘A revolução dos bichos’: por que George Orwell é o único antigo na lista de mais vendidos de ficção no Brasil?. G1, 20 maio 2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2019/05/20/1984-e-a-revolucao-dos-bichos-por-que-george-orwell-e-o-unico-classico-na-lista-de-mais-vendidos-de-ficcao-no-brasil.ghtml>. Acesso em 19 nov. 2021.
[2] DEUTSCHE WELLE. ‘1984’, de George Orwell, lidera lista de mais vendidos nos EUA após ‘fatos alternativos’ de Trump. G1, 25 jan. 2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/1984-de-george-orwell-lidera-lista-de-mais-vendidos-nos-eua-apos-fatos-alternativos-de-trump.ghtml>. Acesso em: 24 nov. 2021.
[3] CARNEIRO, Raquel. Em domínio público, livro ‘1984’ vira ouro de editoras e vendas sobem 663%. Veja, 25 fev. 2021. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/cultura/em-dominio-publico-livro-1984-vira-ouro-de-editoras-e-vendas-sobem-663/>. Acesso em: 24 nov. 2021.
[4] KALACHE, Alexandre. 500 mil mortos, milhões de sequelados e nenhuma empatia. Folha de S. Paulo, 23 jun. 2021. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/folha-100-anos/2021/06/500-mil-mortos-milhares-de-sequelados-e-nenhuma-empatia.shtml>. Acesso em: 24 nov. 2021.
[5] CARAM, Bernardo. Sem mencionar 500 mil mortos ou protestos, Bolsonaro homenageia policiais em vídeo. Folha de S. Paulo, 19 jun. 2021. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/06/sem-mencionar-500-mil-mortos-ou-protestos-bolsonaro-homenageia-policiais-em-video.shtml>. Acesso em: 24 nov. 2021.
[6] KALACHE, Alexandre. Ódio e fanatismo invadiram Copacabana. Folha de S. Paulo, 15 set. 2021. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/folha-100-anos/2021/09/odio-e-fanatismo-invadiram-copacabana.shtml>. Acesso em: 24 nov. 2021.
[7] 27,7% dos brasileiros se declaram de direita. É quase o triplo da esquerda. Gazeta do Povo, 26 out. 2020. Disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/republica/breves/pesquisa-preferencia-politica-brasileiros-direita-esquerda/>. Acesso em: 24 nov. 2021.
[8] MINISTRO do Meio Ambiente defende passar ‘a boiada’ e ‘mudar’ regras enquanto atenção da mídia está voltada para a Covid-19. G1, 22 maio 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/22/ministro-do-meio-ambiente-defende-passar-a-boiada-e-mudar-regramento-e-simplificar-normas.ghtml>. Acesso em: 24 nov. 2021.
[9]OLIVEIRA, Joana. Bolsonaro é “líder e porta-voz” das ‘fake news’ no país, diz relatório final da CPI da Pandemia. El País, São Paulo, 20 out. 2021. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2021-10-20/bolsonaro-e-lider-e-porta-voz-das-fake-news-no-pais-diz-relatorio-final-da-cpi-da-pandemia.html>. Acesso em: 24 nov. 2021.
[10] JORNAL NACIONAL. Bolsonaro e seguidores insistem em tratamento com cloroquina, ineficaz contra a Covid. G1, 12 jun. 2021. Disponível em: <https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2021/06/12/bolsonaro-e-seguidores-insistem-em-tratamento-com-cloroquina-ineficaz-contra-a-covid.ghtml>. Acesso em: 24 nov. 2021.
[11] RELEMBRE o que Bolsonaro já disse sobre a pandemia, de gripezinha e país de maricas a frescura e mimimi. Folha de S. Paulo, São Paulo e Brasília, 5 mar. 2021. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/03/relembre-o-que-bolsonaro-ja-disse-sobre-a-pandemia-de-gripezinha-e-pais-de-maricas-a-frescura-e-mimimi.shtml>. Acesso em: 24 nov. 2021.
[12] CHADE, Jamil. Bolsonaro chega ao limite da indecência ao banalizar a morte. El País, 11 nov. 2020. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2020-11-11/bolsonaro-chega-ao-limite-da-indecencia-ao-banalizar-a-morte.html>. Acesso em: 24 nov. 2021.
[13] IDOETA, Paula. Bolsonaro ‘fantasia’ retorno a 1964, mas cenário não permite golpe, opina cientista político. BBC, 6 set. 2021. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58444019>. Acesso em: 24 nov. 2021.
[14] RUFFATO, Luiz. O analfabeto político. El País, 12 out. 2016. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/10/12/opinion/1476230367_289900.html>. Acesso em: 24 nov. 2021.
[15] DALL'AGNOL, Laísa. Bolsonaro mantém rejeição de maior parte da população, diz pesquisa. Veja, 3 nov. 2021. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/blog/radar/bolsonaro-mantem-rejeicao-de-maior-parte-da-populacao-diz-pesquisa/>. Acesso em: 24 nov. 2021.
[16] BRUM, Eliane. Como funciona o golpe de Bolsonaro. El País, 15 set. 2021. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-09-15/como-funciona-o-golpe-de-bolsonaro.html>. Acesso em: 24 nov. 2021.
[17] AFP. Bolsonaro, o candidato antissistema que se anuncia como salvador da pátria. Istoé, 5 out. 2018. Disponível em: <https://istoe.com.br/bolsonaro-o-candidato-antissistema-que-se-anuncia-como-salvador-da-patria/>. Acesso em: 24 nov. 2021.