A Função Antissocial da “Lei dos Canudinhos”

Uma análise da lei que veda o uso canudos de plástico sob a luz da função social da empresa*

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O direito comercial é um grande exemplo de como a necessidade social molda as nossas instituições. Através de uma perspectiva histórica acompanhamos sua evolução desde a teoria subjetiva, que requeria a inscrição do comerciante nas guildas mercantis, até a atual (considerada ultrapassada por muitos) teoria da empresa, que reconhece a atividade empresarial por ser uma atividade econômica organizada mediante fatores de produção[i].

O mesmo pode ser dito para a função social da empresa. De acordo com Maria Beatriz Gomes, o princípio da função social da empresa, que também é disciplinado na lei das Sociedades Anônimas (art.116, PU e art.154) e no Código Civil (art.421 do CC/02), faz com que as empresas devam respeitar valores éticos, como o meio ambiente e a livre concorrência. O princípio atua como um poder-dever do empresário para realizar interesses coletivos, fazendo com que ele tenha de levar conta a sociedade ao seu redor. Ao mesmo passo, este veda a empresa de exercer atos contra o interesse coletivo. Visto isso, pode-se notar que a função social da empresa, nos dias de hoje, possui um viés institucionalista, considerando funções e objetivos para além do lucro para seus acionistas[ii].

Anteriormente, adotando uma visão puramente contratualista, a função social apenas afirmava o que já era obvio, sendo essa a importância e centralidade do instituo da empresa para a sociedade, atuando como um imenso gerador de riqueza e empregos. A expansão e internalização dos interesses sociais na função da empresa (mencionadas no parágrafo acima), de forma alguma mudam o fato de que a mesma continua sendo um vetor central para todo o desenvolvimento socioeconômico, necessitando de apoio e fomento, especialmente nesses tempos de crise.

Ao analisar, contudo, a Lei Municipal do Rio de Janeiro, nº 6384/18, mais conhecida como “Lei dos Canudinhos”, por vedar a utilização de canudos de plástico em estabelecimentos comerciais que vendem produtos alimentícios, percebe-se, que a lei não considerou algumas de suas externalidades, mais especificamente o impacto nas indústrias que produzem esses canudos. Ao mesmo passo que se deve reconhecer a tentativa da lei de fazer com que as organizações atinjam sua função social, tendo maior responsabilidade ambiental, repara-se que essa lei pode ter sido infectada pelo efeito cobra, sendo isso quando uma política acaba por agravar a própria situação que visava remediar.

Logo após a lei entrar em vigor, empresários que trabalham com a produção desses canudos de plástico alegaram que do dia para a noite viram seu faturamento cair em até 20%. A mudança de cenário ocorreu de forma tão frenética e repentina que fabricantes desabafam afirmando que de repente viraram vilões nos olhos da sociedade. Esse cenário se torna ainda mais preocupante quando se percebe que esses produtos são comercializados principalmente por empresas de pequeno e médio porte[iii].

Retornando ao art.170 da CF, repara-se que seu inciso IX, pleiteia pelo tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte, sendo este um dos objetivos do Estado na ordem econômica. A centralidade da empresa para o desenvolvimento socioeconômico já foi destacada neste artigo, mas, além disto, cabe-se ressaltar a específica importância do pequeno empresário no Brasil, que, de acordo com a Sebrae, é responsável por 52% dos empregos no setor privado e 27% do PIB do país[iv]. Esse fato novamente destaca a importância da iniciativa privada para a nossa sociedade, sendo um gerador de empregos, impostos e riqueza.

Creio que aqui seja o momento apropriado para um grande questionamento sobre a “Lei dos Canudinhos”. Como é que uma norma que se propõe a zelar pelo bem social, através da proteção do meio ambiente, simplesmente ignora os efeitos que irá causar sobre o maior proponente de riqueza e bem-estar social do país?

Ao invés de fomentar e incentivar o pequeno empresário, a “Lei dos Canudinhos” simplesmente cortou 1/5 de seu faturamento. Além de tudo, uma das companhias afetadas pela lei relata que terá de gastar R$845 mil para se adaptar à nova regulação e produzir canudos de papel[v]. Cabe-se ressaltar, que essa organização possui faturamento anual de 4 milhões, a categorizando como uma empresa de pequeno porte (art.3º, II da Lei Complementar 123/06). Levando essas figuras como exemplo, a “Lei dos Canudinhos” pode ter causado uma perda monetária de cerca de R$1.6 milhões para corporações de seu mesmo porte, significando quase metade de seu faturamento anual.

Vistos esses relatos, será que podemos afirmar que, mesmo com objetivos nobres, essa lei está agindo de forma contrária ao interesse público? A resposta é sim, pois, ao causar prejuízos milionários a pequenas empresas da noite para o dia, podemos presumir que estas não irão ou, ao menos, terão maiores dificuldades, em realizar sua função social. Essa dificuldade em concretizar este princípio fundamental refere-se a ambas as dimensões da empresa. A dimensão contratualista é afetada, pois, como a companhia poderá gerar riqueza, arrecadar impostos e criar empregos para sua comunidade se perde imensa parcela de seu mercado da noite para o dia? A dimensão institucionalista, por sua vez, também é prejudicada porque, ao vedar o uso dos canudos de plástico, e pelo fato dos canudos de papel serem mais caros, isso acaba incentivando o maior uso de copos de plástico, produtos que causam um risco ainda maior para o meio ambiente.

Outros efeitos adversos dessa lei, que viola o interesse social, incluem o maior ônus financeiro para pequenos comerciantes que agora terão que comprar canudos de papel. Também se deve considerar os efeitos a pessoas com deficiência, sendo dependentes do canudinho de plástico para consumir bebidas em estabelecimentos comerciais e que agora não terão alternativas viáveis à sua disposição[vi].

Em suma, repara-se que a “Lei dos Canudinhos”, mesmo possuindo boas intenções, tendo como objetivo reduzir a poluição e construir uma sociedade mais sustentável, acabou por dificultar a possibilidade de empresas realizarem sua função social, prejudicou organizações de pequeno porte e provavelmente resultará em um aumento na poluição pelo uso de copos plásticos. Destaca-se que todos esses efeitos são contrários ao interesse público. Visto isso, ressalta-se que, ao invés de forçar essa regulação sobre os empresários, o governo deveria ter fomentado e ajudado aqueles responsáveis por empresas de pequeno porte nesse processo de transição para, dessa forma, incentivar a companhia a considerar os interesses sociais dentro de seu processo produtivo.

[i] SCALZILLI, João Pedro; TELLECHEA, Rodrigo; SPINELLI, Luis Felipe. Introdução ao Direito Empresarial. Porto Alegre: Buqui, 2020. p.61–147.

[ii] GOMES, Maria Beatriz Mendes. Responsabilidade Social Corporativa: Direito Societário e a interpretação responsável do interesse social. 2019. 59 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) — FGV Direito Rio, Rio de Janeiro, 2019. p.35.

[iii] DESIDÉRIO, Mariana. O desabafo do fabricante de canudos “De repente somos vilões”. Exame, Rio de Janeiro, 2 ago. 2018.
Disponível em: <https://exame.com/pme/com-a-palavra-o-fabricante-de-canudos-de-repente-som/os-viloes/>. Acesso em 13 mar. 2021

[iv]SEBRAE. Micro e Pequenas empresas geram 27% do PIB do Brasil, Brasília, [s.d.]. Disponível em <https://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/ufs/mt/noticias/micro-e-pequenas-empresas-geram-27-do-pib-do-brasil,ad0fc70646467410VgnVCM2000003c74010aRCRD>. Acesso em: 20 mai. 2021.

[v] DESIDÉRIO, Mariana. O desabafo do fabricante de canudos “De repente somos vilões”. Exame, Rio de Janeiro, 2 ago. 2018.
Disponível em: <https://exame.com/pme/com-a-palavra-o-fabricante-de-canudos-de-repente-som/os-viloes/>. Acesso em 13 mar. 2021

[vi] FRANCO, Paulo; ARRUDA, Daniel. Quem nasceu primeiro, o canudo ou o copo de plástico?. Jota, Brasília, 6 set. 2018. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/quem-nasceu-primeiro-o-canudo-ou-o-copo-de-plastico-06092018>. Acesso em 13 mar. 2021

*Por Felipe Morales

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