A investigação do estupro: um catalisador para o trauma

Uma analogia entre o livro “Vista Chinesa”, de Tatiana Salem Levy, e os reais problemas do processo investigatório dos crimes de estupro.

Pedro Caruso Avila
Interfaces Revistas
4 min readNov 29, 2021

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O relato de um estupro inevitavelmente é um processo traumático e difícil de ser acompanhado. Tatiana Salem Levy se propõe a enfrentar toda a dor e sofrimento da violência sexual para escrever o romance “Vista Chinesa”, que retrata a história de uma arquiteta carioca estuprada na estrada do Horto, em direção à Vista Chinesa em 2014, a poucas semanas da Copa do Mundo de Futebol. O livro é escrito, majoritariamente, no formato de cartas, em que a personagem principal, Júlia, conta o ocorrido a seus filhos, Antonia e Martim. A partir desses relatos é possível perceber como um processo pós-traumático é confuso e conturbado, fazendo com que lembrar e descrever os acontecimentos seja algo praticamente impossível. O ponto desta reflexão é como as marcas do estupro ultrapassam as barreiras do corpo e como o choque atrapalha uma descrição clara dos acontecimentos, fazendo com que o processo investigatório do crime seja problemático e produza resultados falhos.

A autora opta por contar esta história, inspirada naquela vivida por uma amiga próxima, na forma de um romance extremamente descritivo que oscila entre a sutileza de uma obra romântica e a agressividade do estupro. Tatiana Salem Levy utiliza do Rio de Janeiro e do contexto para mostrar como uma cidade em festa, uma Mata Atlântica poética e uma vida cheia de sucessos são suprimidos pela violência sexual. A vida de Júlia muda completamente, suas relações pessoais e, principalmente, a relação com seu próprio corpo. Uma mulher saudável, que cuida de seu físico correndo 6km todas as terças e quintas-feiras, se transforma em um corpo fraco, fragmentado e manchado.

“(…) Mas aquela terça-feira na mata ficou cravada não só na alma (…). Ficou impressa no corpo. Está tudo escrito na minha pele (…)”.

Posteriormente, percebe-se que o estupro não é a única causa de traumas em Júlia, mas todos os procedimentos posteriores são um “inferno” por si só. O maior deles, como era de se esperar, é o processo de investigação policial, ao qual a vítima é, por muitas vezes, forçada a se submeter por uma pressão social oriunda do suposto dever moral de impedir que o criminoso permaneça à solta. Ao chegar na delegacia, as feridas de Júlia começam a ser cutucadas e seu pesadelo é revisitado. O fato de ver policiais armados a deixava com mais medo e não dava a segurança que o ambiente policial deveria dar, justamente porque homens desconhecidos e armas traziam-na para o pior momento de sua vida. Assim, a tentativa de encontrar o criminoso já se conturbava antes mesmo de começar.

Essa realidade é percebida na maioria dos casos de estupro, mesmo em delegacias especializadas. Ainda que o tratamento nas delegacias femininas seja mais apropriado, o imediatismo da investigação impede que a vítima tenha um mínimo espaço para se recuperar do processo traumático para aí começar a produzir provas para o processo. Um exemplo desse imediatismo é o exame de corpo de delito, que é extremamente invasivo e deve ser feito logo após as agressões, sendo recomendado que a vítima nem tome banho após o ocorrido.

Tudo isso faz com que a busca pelo criminoso seja falha e perigosa, pois, com uma vítima traumatizada, em um processo que potencializa o trauma, é muito pouco provável que o resultado desta equação seja um produto verdadeiro. O que se pretende defender é que a investigação do estupro com a colaboração da vítima está longe de ser ideal. Durante a leitura percebe-se, mesmo depois de anos, ao escrever cartas sobre o ocorrido, Júlia ainda tem uma memória muito turva dos acontecimentos. Isso fica ainda pior quando acompanhamos a personagem tentando relatar os fatos no seu interrogatório. Ao ser questionada pelo papiloscopista sobre características físicas do seu estuprador, Júlia mal consegue lembrar como era seu cabelo, só conseguia achar as luvas do agressor em sua memória completamente confusa.

O resultado, como dito, geralmente é muito distante do procurado. A pressa de “tirar um estuprador das ruas”, o que acaba por desrespeitar o processo pós-traumático, faz com que se produzam diversas condenações falsas, principalmente em um sistema penal que supervaloriza a palavra da vítima como prova nesses casos. Vale ressaltar que não se pretende, com este artigo, ser contrário às investigações de estupro, mas sim apresentar uma visão crítica a este processo. O livro de Tatiana Salem Levy retrata com precisão e veracidade todos os obstáculos que se colocam entre a vítima e uma memória clara dos acontecimentos, e, consequentemente, que se colocam entre as provas produzidas pela vítima e a verdade dos fatos.

Portanto, por mais correta que seja a vontade estatal de encontrar o responsável por um crime hediondo, é necessário repensar todo o processo de investigação com maior senso crítico, dando mais valor para outras fontes probatórias além dos relatos das vítimas. Assim, será mais provável que menos inocentes sejam condenados por crimes que não tenham cometido e que as vítimas sintam-se menos pressionadas a colaborar. Só assim será possível criar um processo mais justo, tanto com a vítima quanto com a sociedade, processo este que já é imbuído de diversos outros problemas, como o racismo, mas este é tema para um outro trabalho.

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