A literatura é para todos?
A primordial função social da leitura dos renegados gêneros literários*
Os livros, ao longo da história, sempre foram considerados artigos de luxo. Durante a Idade Média eram feitos à mão pelos monges, tornando-se de posse quase exclusiva dos monarcas. Já no início da Idade Moderna, com o surgimento da prensa móvel de Gutenberg, a produção ficou um pouco menos custosa, mas os livros continuavam sendo propriedade quase exclusiva da nobreza e da aristocracia. Ao longo do tempo, o processo evoluiu cada vez mais, tornando-os mais acessíveis progressivamente. Em paralelo a tudo isso, o quase absoluto índice de analfabetismo da Idade Média também vêm diminuindo até os baixos níveis atuais, ainda que não tenha sido zerado (INEP, 2003).
Ainda seguindo a perspectiva histórica, os espaços destinados a essa atividade nunca foram acessíveis à maior parte da população. Inicialmente, as grandes bibliotecas eram mantidas dentro de palácios, longe do alcance dos que não integravam a nobreza. Posteriormente, a nova classe burguesa pôde montar suas próprias bibliotecas particulares. Também surgiram grandes bibliotecas nas universidades mundo afora, as quais eram frequentadas por nobres, membros do clero e da burguesia. Os livros sempre foram mantidos a portas fechadas, distante do alcance das camadas populares.
Atualmente, com o progresso nos métodos produtivos, combinado ao advento da internet, as obras tornaram-se mais acessíveis à população, apesar de ainda ser parcialmente verdade que continuam sendo artigos de luxo para muitos. A despeito desse grau de democratização e do maior letramento da população, o hábito de leitura atual não reflete um aumento proporcional a esses fatores. Isso se deve, em certo grau, ao surgimento das redes sociais, que passou a ocupar muito do tempo vago das pessoas, o qual anteriormente era dedicado a leituras prazerosas (EDUCA MAIS BRASIL, 2020). Também é possível citar a concentração de espaços destinados a esse fim em áreas mais nobres da cidade, como as bibliotecas públicas, e os altos preços para ingressar em eventos e espaços que promovem a literatura, como feiras, bienais e festivais de literatura (RAITH, 2020).
A cultura brasileira atribui pouquíssima importância ao hábito da leitura cotidiana de certos gêneros literários, como a ficção e a literatura popular. Muitas pessoas não reconhecem o valor da leitura como forma de entretenimento e os diversos ganhos sociais que podem ser atribuídos a essa ação, como o estímulo à empatia, ao pensamento crítico e ao autoconhecimento. Em parâmetro geral, associado a fatores históricos e maior quantidade de exemplares impressos, o maior contato das pessoas em idade escolar é com livros didáticos. Estes são os mais valorizados nos espaços estudantis, o que faz a leitura ser encarada como uma obrigação ao invés de diversão e lazer.
Todavia, são diversos os benefícios gerados pelo hábito de leitura em geral e de gêneros de ficção, em particular, para a vida das pessoas e para a vida em sociedade.
Em primeiro lugar, é de conhecimento geral que ler é uma fonte de entretenimento e estimula a imaginação. Não é novidade a sua relação com o estímulo às sinapses cerebrais e seu papel como atividade de lazer. Entretanto, essa noção não é suficiente para estimular leituras não acadêmicas; essas razões não são capazes de retirar a leitura de um campo elitista. Pensando estritamente a partir dessas constatações, a leitura continua sendo uma atividade menos atraente em comparação com as redes sociais e uma obrigação associada à vida acadêmica. Tal constatação se deve ao fato da leitura, por um lado, como entretenimento, ser menos atraente quando comparada a outras maneiras mais baratas e que demandam menos tempo, como os filmes nas plataformas de streaming, embora tragam uma experiência distinta. Por outro lado, após o cansaço de uma grande carga de leituras no trabalho ou nos estudos, as pessoas não querem investir em ler mais, visto que não concebem dois tipos de obras como experiências diferentes. Portanto, pensada como pura fonte de lazer e incremento da atividade cerebral e das habilidades intelectuais, a leitura não é vista como um hábito de grande importância para a sociedade.
Em uma segunda análise, mais profunda desta vez, constata-se o papel fundamental dos gêneros narrativos no desenvolvimento de empatia nas pessoas. Ao se deparar com obras advindas de diversas realidades, o leitor passa a ter contato com visões de mundo, vivências e culturas muito distintas das suas. Embora sejam, muitas vezes, histórias fictícias, essas obras transparecem traços da personalidade do autor, de suas opiniões e experiências. A partir do conhecimento de uma vivência distinta da sua, o espectador da obra consegue compreender melhor o lugar do próximo, de modo a aumentar o respeito e a compreensão entre pessoas diferentes ideológica, cultural e geograficamente. Nesse sentido, principalmente quando a origem do autor é muito distante da realidade do leitor, esse contato gera maior empatia e respeito pela diversidade (NIETO, 2016).
Outra característica marcante é que as narrativas denotam o contexto temporal: os costumes da época, o cenário político e outras diversas características. No decorrer da obra, o leitor está imerso na história e consegue compreender de uma maneira mais global todo o cenário. Além disso, passa a compará-lo com a sua própria vivência, mesmo que não realize esse exercício durante a leitura: consegue identificar em seu cotidiano características semelhantes aos fatos e acontecimentos das histórias, ou seja, é capaz de identificar no mundo, diferenças e semelhanças entre a sua e outras realidades atuais ou históricas. Em síntese, esse aspecto produz um claro estímulo ao pensamento crítico — habilidade imprescindível para o corpo social. Em um mundo globalizado e permeado de interesses econômicos e ideológicos, é de suma importância que as pessoas sejam capazes de refletir sobre as razões que motivam e orientam as decisões dos grandes agentes mundiais, dos discursos amplamente difundidos pela mídia e redes sociais e das discussões no âmbito político-social (OLIVEIRA; FRANCO, 2014).
Ademais, o autoconhecimento é muito estimulado pelas tramas. Durante a Era da Revolução Técnico-Informacional que vivenciamos, as informações são bombardeadas pela mídia e pela internet; com o mundo globalizado tomamos conhecimento, além das notícias locais, dos acontecimentos nacionais e globais instantaneamente. A quantidade de informações que chega do mundo exterior é tão grande, que muitas vezes as pessoas não param para refletir sobre suas experiências, seus sentimentos e suas motivações para cada ação. Não à toa, os males do século XXI são doenças psicológicas — a mente adoece quando não paramos para refletir sobre nós mesmos. Diante dessa perspectiva, ao mergulhar em tramas complexas com personagens profundos, em muitos momentos o leitor se identifica com diversos sentimentos e situações de suas próprias vidas se repetindo na ficção. Com isso, passa a refletir e entender melhor seus próprios sentimentos a partir da vivência do personagem (RODRIGUES; CARRASCO, 2020).
Em última análise, prestigiar a literatura popular local torna o contato com a cultura muito mais intenso. Por meio dessas obras, é possível conhecer de uma maneira mais profunda as origens e razões por trás dos hábitos de um povo. Por muitas vezes, em países muito grandes, como é o caso do Brasil, as literaturas regionais são ótimas fontes para conhecer melhor as crenças e hábitos de outros locais (como é o caso da literatura de cordel), aumentando a identificação de toda a diversidade de costumes do povo e o sentimento de pertencimento nacional.
Por fim, após constatados alguns dos muitos motivos pelos quais a leitura é essencial para todas as faixas etárias e camadas sociais, é possível afirmar com assertividade que o Brasil precisa tornar o acesso aos livros ainda mais democrático e investir na presença e na melhoria de espaços públicos em localidades próximas às camadas populares, como nas periferias e nas escolas públicas. Portanto, se esse objetivo for concretizado, no futuro, a leitura será encarada como um hábito valioso não só para a vida pessoal, como para a vida em sociedade, e se tornará um exercício prazeroso difundido para a coletividade.
REFERÊNCIAS
EDUCA MAIS BRASIL. Leitura no Brasil: falta tempo para os livros, mas sombra para as redes sociais: maior queda na leitura foi entre pessoas com ensino superior, segundo pesquisa. Diário do Nordeste, 14 set. 2020. Disponível em: <https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/educalab/leitura-no-brasil-falta-tempo-para-os-livros-mas-sobra-para-as-redes-sociais-1.2988469>. Acesso em: 2 abr. 2021.
INEP. Estudo detalha situação do analfabetismo no País, 4 jun. 2003. Disponível em: <http://inep.gov.br/artigo/-/asset_publisher/B4AQV9zFY7Bv/content/estudo-detalha-situacao-do-analfabetismo-no-pais/21206>. Acesso em: 2 abr. 2021.
NIETO, Marya González. Ler ficção nos torna mais empáticos. El país, 19 jul. 2016. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/07/18/cultura/1468850653_180510.html>. Acesso em: 3 abr. 2021.
OLIVEIRA, Rosangela Miola Galvão; FRANCO, Sandra Aparecida Pires. O papel da leitura como ato formativo do sujeito crítico. In: Jornada de Didática: Desafios para a Docência, 3., 2014, Londrina. Anais eletrônicos. Londrina: UEL, 2014. Disponível em: <http://www.uel.br/eventos/jornadadidatica/pages/arquivos/III%20Jornada%20de%20Didatica%20-%20Desafios%20para%20a%20Docencia%20e%20II%20Seminario%20de%20Pesquisa%20do%20CEMAD/O%20PAPEL%20DA%20LEITURA%20COMO%20ATO%20FORMATIVO%20DO%20SUJEITO%20CRITICO.pdf>. Acesso em: 3 abr. 2021.
RAITH, Alexandre. Um perfil do Leitor Brasileiro. Itaú Social, São Paulo, 30 nov. 2020. Disponível em: <https://www.itausocial.org.br/noticias/um-perfil-do-leitor-brasileiro/#:~:text=Os%20suportes%20de%20leitura%20t%C3%AAm%20se%20transformado%20ao%20longo%20da%20hist%C3%B3ria.&text=O%20estudo%20identificou%20queda%20de,de%2011%25%20para%2026%25>. Acesso em: 3 abr. 2021.
RODRIGUES, Janine; CARRASCO, Thainá. A importância da leitura para o autoconhecimento e fortalecimento do pensamento crítico. Porvir, 13 mar. 2020. Disponível em: <https://porvir.org/a-importancia-da-leitura-no-processo-de-autoconhecimento-e-fortalecimento-do-pensamento-critico/>. Acesso em: 3 abr. 2021.
*Por Beatriz Sabdin