A memórias da Nigéria através da literatura, da guerra à redemocratização
Pelos olhos dos personagens de Chimamanda Adichie em “No seu pescoço”
Introdução
O artigo de opinião buscará apresentar de forma concisa o desenvolvimento da política nigeriana a partir da utilização de três contos ficcionais presentes no livro “No seu pescoço”, de Chimamanda Ngozi Adichie. A contextualização se dará pela época aludida nos textos apresentados com subsequentes esclarecimentos visto que o assunto possivelmente não será de conhecimento geral. Serão utilizados os contos: Fantasmas (2004), que apresentará um panorama breve da guerra civil e das condições atuais em relação a corrupção e serviços públicos (considerando o protagonista como professor universitário aposentado); Uma experiência privada (2004/ 2008), trazendo os conflitos étnico religiosos que cercam o país assim como fornecem um contexto mais claro da segregação que resultou na guerra; e, por fim, A Embaixada Americana (2002) que denota as limitações da liberdade de expressão em um país tão marcado por governos militares.
O objetivo do presente artigo será apresentar por meio de analogias e contextualização o desenvolvimento da sociedade nigeriana com ênfase na corrupção política do pós guerra, o cenário político que resultou na eclosão da mesma e suas perpetuações mesmo após a redemocratização do país, perpassando pelas dificuldades enfrentadas durante os regimes militares.
1. A Nigéria e um recorte de sua população
“No seu pescoço” é uma coletânea de contos publicados em 2009 pela escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie e apresenta um recorte de um país na busca por sua redemocratização após uma sangrenta guerra civil e sucessivos regimes militares. Os contos ficcionais apresentam personagens de diferentes grupos étnicos em situações e tempos diversos, fornecendo uma contextualização da sociedade por meio de situações que denotam as características de períodos históricos e governos. Ademais, de forma sutil a autora apresenta a perspectiva da construção de uma história afastada daquela imposta pelo governo, apresentando uma outra perspectiva a momentos pouco abordados dentro do próprio contexto da história nigeriana, tal como a Guerra do Biafra (1966–70).
A Nigéria é apresentada de forma dividida, tanto em decorrência da guerra, quanto de conflitos étnico-raciais, que perpassam a cultura e a própria religiosidade da sociedade, majoritariamente dividida entre cristãos e mulçumanos. Por diversos momentos são apresentadas as diferentes línguas faladas, até mesmo pelas pessoas em situação de rua, de forma que ficam evidentes as diferenças culturais. “Disseram isso em inglês pidgin, depois em igbo e em iorubá” (ADICHIE, 2009) até mesmo durante momentos de conflito as pessoas “começaram a gritar em inglês, em pidgin, em hausa, em igbo” (ADICHIE, 2009).
As diferenças culturais também são ligadas à aparência física, que é diretamente associada à religião, os igbos, situados principalmente na parte Leste e Sul da Nigéria são conhecidamente um grupo que melhor adotou os padrões europeus durante os períodos como colônia, de forma que apresentam características associadas aos colonizadores, tais quais a religião cristã e a pele mais clara, os hausas por sua vez se concentram na região Norte do país e possuem uma maioria muçulmana.
Chika se pergunta se a mulher a está observando também, se sabe, por sua pele clara e pelo rosário de dedo feito de prata que sua mãe insiste em obrigá-la a usar, que é igbo e cristã. Mais tarde, Chika descobrirá que, quando ela e a mulher estavam conversando, mulçumanos hausas estavam atacando critãos igbos a machadadas e apedrejando-os. (ADICHIE, 2009)
Adichie apresenta personagens de diferentes culturas se aproximando em situações conflituosas de forma a demonstrar a violência em uma visão menos étnica, fugindo dos estereótipos clássicos de ódio ao apresentar a solidariedade entre duas mulheres de etnias e religiões diferentes.
Mais tarde, Chika lerá no The Guardian que “os muçulmanos reacionários do norte, falantes da língua hausa, têm um histórico de violência contra não muçulmanos” e, em meio à sua dor, irá parar para lembrar que examinou os mamilos e viveu a experiência de conhecer a gentileza de uma mulher que é hausa e muçulmana (ADICHIE, 2009)
O conto Uma experiência privada retrata justamente a perpetuação dos conflitos étnico-raciais, enaltecendo a humanidade e sororidade de mulheres enquanto experimentam a insegurança de estar em uma zona de conflito. A ambientação se dá na cidade de Kano, no Norte do país, e apresenta um conflito que deixa diversos mortos, iniciado com um fundo religioso “quando um homem passou de carro sobre um exemplar do Alcorão que estava no acostamento, um homem que, por acaso, era igbo e cristão” (ADICHIE, 2009).
2. A Guerra de Biafra e sua presença na memória coletiva
Os conflitos entre os grupos apresentados na ultima seção deram origem à Guerra do Biafra e são apresentados por diversas vezes em diferentes contos sugerindo a sua recorrência, não obstante as políticas implementadas no pós guerra. O governo declarou o fim dos conflitos “sem vencedor, sem vencidos” em um discurso que se popularizou em consonância com os 3Rs — reabilitação, reconstrução e reconciliação, designados para a promoção de uma nação unida.
No contexto do livro e segundo historiadores, a Nigéria ainda se apresenta como um país desunido e profundamente segregado. “Forty-four years after the war however, in the year of 2014, nothing of the sort has happened and the psychology of the war has continued to inform political thinking and action in the country” (OGLOBENLA et al., 2017). A Guerra do Biafra pautou todo o desenvolvimento da sociedade e da história do país de forma que é um tema de extrema relevância para a autora.
Em entrevistas, Chimamanda Adichie se pronunciou a respeito de escrever sobre a Nigéria e o passado ressaltando a ideia “that we can have a conversation about our history. Because I just really feel very strongly that unless we know what happened in the 1970’s we just, we can’t move forward” (CNN, 2009). Desse modo, ela toca em um assunto sensível e muito pouco discutido por meio da memória de seus personagens. Em Fantasmas, a personagem recorda a guerra e suas consequências ao reencontrar um amigo da faculdade. As memórias perpassam uma perspectiva da guerra por parte de uma classe média que teve a possibilidade de sair do país conforme o avanço das tropas federais.
A Guerra do Biafra foi uma guerra civil étnica que eclodiu em 1966 e durou até 1970 resultado de uma sucessão de golpes e contragolpes de governos da Primeira República e, por conseguinte, do aumento da segregação entre os grupos étnicos. A população da Nigéria é plural, apresentando diversos grupos de religiões e características, entretanto o golpe realizado por um General igbo aprofundou a separação entre os igbos, um povo majoritariamente cristão, e as demais etnias de religião muçulmana. Após o contragolpe que restaurou o governo para líderes muçulmanos, irromperam pogroms no Norte, majoritariamente muçulmano, visando a população cristã. Estima-se que durante esse conflito mais de 30 mil igbos tenham sido mortos como forma de protesto, e, os demais, migraram para a região Leste do país de maioria cristã (CHAN, 2017).
A falha de comunicação entre o governo e os igbos resultou na declaração de independência de Biafra, uma região no Sudeste do país.
When we noticed that the Federal Government of Nigeria did not respond to our call to end the pogroms, we concluded that a government that failed to safeguard the lives of its citizens has no claim to their allegiance and must be ready to accept that the victims deserve the right to seek their safety in other ways — including secession (ACHEBE, 2012, p. 95).
O professor James Nwoye apresenta por meio de suas recordações a confiança dos exércitos de Biafra e a tomada de Nsukka, assim como, a desolação do local após a guerra “ sobre a paisagem de ruínas, os telhados arrancados, as casa repletas de buracos que Ebere disse parecerem os de um queijo suíço” (ADICHIE, 2009). Revisitando suas memórias, também são mencionados os mortos e os famintos, a filha e os amigos que foram levados pela guerra. Porém, mesmo em um contexto de desolação James se apresenta de certa forma como um saudosista, mencionando os ideais, o Clube dos Professores, depois duramente criticado “[n]a universidade só fazem política, política, política, enquanto os alunos pagam pelas notas com dinheiro ou seus próprios corpos” (ADICHIE, 2009), “os vivas” de independência.
“Mas nós quase nunca falávamos da guerra” (ADICHIE, 2009), esse era o acordo entre os sobreviventes do Biafra e é essa história de ocultamento que Chimamanda Adichie desafia ao escrever sobre a guerra, mesmo que não a tenha vivido. Se desafia a falar sobre um passado obscurecido para que a partir disso possam ir adiante.
3. O pós guerra, os governos militares e seus reflexos
Quando fora de suas memórias, Nwoye apresenta um cenário de corrupção e desolação, que reforça o sentimento saudosista que parece permear suas falas. A corrupção do governo não é diretamente abordada, mas são apresentados contextos e situações que evidenciam o descaso com a população e a desmoralização dos órgão públicos. “O dinheiro sumia e depois nós víamos carros novos rondando, com nomes de fundações estrangeiras inexistentes gravadas na lataria” (ADICHIE, 2009) descreve a personagem tratando do reitor da universidade em que trabalha, apresentada antes da guerra como um centro de prestígio e que agora está também corrompida como os demais órgãos.
A corrupção de órgão públicos permeia diversos dos contos do livro, Cela um também perpassa as facilidades de acesso mediante o suborno de agentes estatais — até mesmo com comida — dentro de penitenciárias, assim como apresenta a perseguição política e prisões injustas.
No decorrer dos textos são evidentes as críticas aos governos militares e a presença de diversos movimentos pró-democráticos, refletindo assim as próprias experiências da autora, que deixou o país antes da redemocratização ocorrida em 1999. Chimamanda Adichie saiu da Nigéria em 1996 com 19 anos, ainda no governo de Sani Abacha.
Apesar de a maior parte dos contos não especificar o ano em que se situa, o governante general Sani Abacha (1993–1998) é comumente mencionado sob uma ótica negativa. Conhecido internacionalmente como um dos cinco governantes mais corruptos do mundo (INFOPLEASE, [s.d.]), ele foi responsável por diversas perseguições políticas e repressão, além de inúmeros escândalos de desvio de verbas.
A violência e a repressão são assuntos comuns em quase todos os textos, principalmente em virtude de conflitos culturais e movimentos contra o governo, entre os quais o de Sani Abacha é o mais mencionado. A corrupção também é constante apresentada dentro dos próprios servidores públicos, como no conto Fantasmas em que o funcionalismo público é criticado com a ausência de pagamento das aposentadorias e também a falta de mobilização sem que haja um suborno ou compra de favores. O conto Cela um também perpassa as facilidades de acesso mediante o suborno mesmo de agentes estatais, assim como apresenta a perseguição política e prisões injustas.
Entretanto as críticas mais duras ao governo são feitas no conto A Embaixada Americana, em que uma mulher repassa a perseguição sofrida pelo seu marido por parte do governo, o que resulta em sua evasão do país, a morte de seu filho e a sua presença na fila da embaixada em busca de um refúgio político. Adichie apresenta de forma direta a invasão da casa da personagem, a destruição dos seus pertences e as ameaças que sofre em virtude das publicações contra o governo por parte de seu marido jornalista.
Todos que apoiavam a imprensa pró-democracia conheciam seu marido, especialmente por ele ter sido o primeiro jornalista a dizer publicamente que a tentativa de golpe era uma farsa, a escrever uma matéria acusando o general Abacha de inventar um golpe para poder matar e prender seus oponentes. (ADICHIE, 2009)
A notoriedade entretanto não é suficiente, de forma que as suas denúncias resultam em uma intensa repressão policial, com a invasão de sua casa e o assassinato acidental de seu filho.
O texto não poupa críticas ao governo por meio do jornalista que descreve um artigo de nome “O governo de Abacha até agora: de 1993 a 1997” no qual denuncia que o governo “apenas compilara assassinatos, contratos não cumpridos e dinheiro desaparecido. Não era exatamente uma novidade para os nigerianos” (ADICHIE, 2009). Uma parte da sociedade é apresentada através de um interlocutor que exclama a coragem dos editores ao publicarem contra o governo determinando aqueles que não o fazem como “[o] verdadeiro problema deste país, não temos gente corajosa o suficiente” (ADICHIE, 2009), denotando assim uma insatisfação coletiva com o governo militar.
Em Uma experiência privada também são apresentadas críticas ao governo por meio da irmã da narradora, que acaba desaparecida no fim do conflito.
Imagina os olhos cor de cacau de Nnedi se iluminando, seus lábios se movendo depressa, explicando que as ondas de violência não acontecem do nada, que a religião e as etnias muitas vezes são politizadas porque o governante fica a salvo quando os governados famintos matam uns aos outros. (ADICHIE, 2009)
Mesmo assim, as personagens possuem perspectivas positivas e, alguns deles, mesmo diante da possibilidade de sair do país, optam por ficar e viver as suas vidas da forma como o faziam antes. A personagem de A Embaixada Americana opta por abandonar sua entrevista de visto para continuar no país que perseguiu seu marido e assassinou seu filho. Em uma situação análoga, o personagem de Fantasmas também possui a possibilidade de morar nos Estados Unidos com a sua filha, porém decide permanecer em seu país “[u]ma vida repleta disso que chamamos de ‘oportunidade’. Uma vida que não é para mim.” (ADICHIE, 2009)
“‘É uma vida boa, papai?’, Nkiru tem perguntado ultimamente por telefone, com aquele leve sotaque americano que me perturba um pouco. Não é boa, nem ruim, respondo; é apenas a minha vida. E é isso que importa” (ADICHIE, 2009)
Conclusão
“No seu pescoço”, por meio de uma narrativa de contos de diferentes épocas, apresenta a reconstrução de uma memória de um país marcado pela guerra e que ainda possui em seu cerne um povo segregado e insatisfeito. Apesar das contundentes críticas das personagens, estas por diversas vezes apresentam orgulho e uma sensação de pertencimento ao país. A construção, através da ficção, da história por vezes obscurecida de um povo é o que desperta a aproximação com o leitor e a possibilidade de entender um pouco da cultura e sociedade nigeriana por diversas pessoas ao redor do globo.
Referências:
ACHEBE, Chinua. There was a country: a personal history of Biafra. Nova York: Penguin Press, 2013.
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. No seu pescoço. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. Edição digital não paginada.
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