#PraTodosVerem: a foto mostra as mãos de duas pessoas apoiadas em uma mesa. O primeiro par de mãos, de unhas pintadas de marrom, do lado esquerdo da imagem, segura um documento enquanto o segundo par de mãos, de relógio e pulseira, assina um papel no centro da imagem. A foto é de Romain Dancre.

Análise do panorama do sistema adotivo no Brasil e suas consequências

Gabriel RQ
Interfaces Revistas
8 min readNov 22, 2020

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por Gabriel Rogenfisch

I. INTRODUÇÃO

O presente artigo objetiva analisar a atual situação do sistema adotivo no Brasil e as consequências de suas falhas estruturais no entorno da vida social dessas crianças. Esse tema é de suma relevância, haja vista a quantidade de crianças sem lares no país — atualmente mais de nove mil –, mas também por ser um estudo para identificação das falhas do sistema adotivo.

Para a pesquisa, foram usados dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Esses dados foram adquiridos por meio de um formulário, o qual os pretendentes à adoção têm de preencher, de maneira que façam parte do Cadastro Nacional de Adoção (CNA). Nesse questionário eles respondem perguntas como até qual faixa etária eles aceitam adotar e se há uma predileção por determinada raça. As informações referentes à situação das crianças foram elaboradas de acordo com os dados registrados no CNA.

II. A QUESTÃO JURÍDICA

A Constituição de 1988 preceitua nos artigos 226 e 227 a importância da família e a função do Estado para o bom desenvolvimento das crianças. Nesse contexto, o direito à convivência e à reintegração familiar são de extrema importância ao membro da Assembleia Constituinte, ressaltado o uso do termo “absoluta prioridade” no caput do art. 227.

É sob esse prisma axiológico que a lei 12.010 de 2009, a Lei de Adoção, foi editada, visando o aprimoramento do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990). Nesse sentido, uma das medidas empregadas foi a intensa participação do Poder Judiciário, com uma tarefa vigilante sobre o processo adotivo. Essa decisão, entretanto, traz consequências processuais negativas.

Em primeiro lugar, a legislação vigente outorga à família ampla, isto é, qualquer parente que ela conviva, ou tenha laços de afinidade e afetividade, como tios e avós, a prioridade no processo de integração familiar da criança, sendo a adoção um evento excepcional. Contudo, há certa resistência desses familiares em adotarem os jovens, o que torna o processo longo. Além disso, o motivo da adoção, não raro, é a culpa, não o amor nutrido pela criança. Assim, a criação e, consequentemente, o desenvolvimento socioemocional do jovem serão prejudicados, caso não encontre um ambiente de acolhimento.

Outrossim, o principal fator para esse quadro negativo, destacado por especialistas na área, é a falta de estrutura dentro do Poder Judiciário: não existem varas da família suficientes para cumprir com as competências de forma eficiente, isto é, os órgãos judiciários não conseguem exercer plenamente as atribuições devido à carência de meios para tanto. Nesse contexto, para o cumprimento dos requisitos em conformidade com os estabelecidos na lei, o processo é muito moroso.

A lei de adoção preconiza que o processo deve ser concluído em até 120 dias, todavia, não é isso que se verifica. Em consonância com essa tese está a reportagem do G1[1] que demonstra que a criança só consegue entrar na lista de adoção, em média, após 4 anos do momento em que foi registrada no sistema. Ainda, a reportagem revela serem necessários, na região Centro-Sul, que apresenta o maior tempo médio, dois anos para haver uma adoção[2].

Por fim, é possível concluir que o arcabouço jurídico construído não é eficiente. A legislação vigente tinha como intuito melhorar a qualidade do processo e garantir que as crianças não sofressem práticas abusivas. A experiência prática, contudo, demonstra que ao estabelecer um forte controle do Poder Judiciário a adoção é prejudicada, já que não é capaz de cumprir com todas as condições em tempo hábil. Mesmo assim, a questão jurídica não explica ao todo porque o sistema adotivo no Brasil é tão ineficaz. É preciso analisar outras dimensões do problema.

III. A QUESTÃO SOCIAL

Os gráficos nesta seção demonstram o perfil de criança que os adotantes procuram e revelam um problema de preferência que possui duas dimensões: uma etária e outra racial.

Dados do CNJ — Cadastro Nacional de Adoção. #PraTodosVerem: o gráfico faz a correlação entre o número de crianças cadastradas para adoção por idade e o total de pretendentes para cada faixa etária, demonstrando que há um maior número de pretendentes para crianças de até 5 anos, mas que o maior número de crianças para adoção está entre as de 6 anos ou mais.

O primeiro diagrama é capaz de fazer correlação entre o número de pretendentes, as propensões deles quanto à idade e a quantidade de crianças por faixa etária. Diante disso, é possível perceber um claro descompasso da idade das crianças e aquela que os pretendentes buscam.

Nesse contexto, há uma grande predileção por crianças de até 2 anos. Isso pode ser explicado pelo fato de que há uma vontade de acompanhar o crescimento e toda a trajetória de vida, justificando a adoção precoce. Contudo, apenas 12% do total de crianças no sistema adotivo encontram-se com até 2 anos, o ponto máximo de procura dos pais. A partir dessa idade, há uma redução do número de adotantes e um crescimento no número de crianças cadastradas no CNA.

Dados do CNJ — Cadastro Nacional de Adoção. #PraTodosVerem: o gráfico mostra a preferência de raça de adotantes na Região Nordeste do Brasil, estando os adotantes mais predispostos a adotar, nesta ordem, crianças pardas, brancas, amarelas, negras e indígenas. Enquanto a predisposição para adotar crianças brancas e pardas supera os 80% de adotantes, a predisposição para adotar crianças das demais raças fica na casa dos 60%.

Seguindo a lógica da situação apresentada, a maior parte das crianças são maiores de 2 anos e são as que apresentam menor número de candidatos disponíveis para adotá-las. Tal realidade gera um círculo vicioso: o tempo para adoção é grande e quanto mais velhas as crianças ficam, mais difíceis as chances de adoção, visto que os pretendentes possuem vontades diferentes do que a realidade demonstra.

Outra dimensão das falhas no sistema adotivo é a questão racial. Nesse sentido, é claro o favoritismo, ou a falta de objeção, em adotar crianças brancas. Para solidificar essa afirmação, tomou-se como parâmetro os extremos, os postulantes do Nordeste e os do Sul do país. Isso porque os candidatos são questionados sobre quais raças eles aceitariam, podendo ser constatado a menor receptividade a crianças da raça branca, na primeira região, em detrimento à segunda região, que são os mais receptivos.

Dados do CNJ — Cadastro Nacional de Adoção. #PraTodosVerem: o gráfico mostra a preferência de raça de adotantes na Região Nordeste do Brasil, estando os adotantes mais predispostos a adotar, nesta ordem, crianças brancas, pardas, amarelas, negras e indígenas. Enquanto a predisposição para adotar crianças brancas chega a quase 100%, para crianças pardas, ela fica entre 70 e 80% e, para as demais raças, fica abaixo de 60%.

É possível dizer que a população do Sul brasileiro é majoritariamente branca e, por isso, haveria uma questão de identificação com o filho a ser adotado. No entanto, isso pode explicar a maior taxa de receptividade regional do Brasil (97.13%), mas não explica a preferência nas demais regiões do país. Em todas as regiões analisadas com base nos dados do CNJ, com exceção do Nordeste,[3] as crianças brancas são as que apresentam maior taxa de aceitação.

Essa constatação se torna ainda mais problemática a partir da informação de que a maior parte da população brasileira se identifica como parda.[4] Esse dado diz sobre muito mais do que apenas o sistema adotivo; traz luz à questão do racismo estrutural. Quando se está disposto a adotar uma criança, a cor da pele não deve alterar o quanto o adotante irá amar.

IV. A QUESTÃO REGIONAL

O propósito dessa análise é verificar se a região do Brasil que a criança nasce faz com que ela tenha mais chances de estar no sistema de adoção. Para isso, será utilizado o seguinte gráfico:

Dados do CNJ — Cadastro Nacional de Adoção. #PraTodosVerem: o gráfico mostra o número absoluto de crianças cadastradas para adoção por região do país, com menos de 500 crianças cadastradas na região Norte, um pouco menos de 1000, na região Centro-Oeste e pouco menos de 1500 no Nordeste, em contraste com as mais de 2500 crianças na região Sul e aproximadamente 4000 do Sudeste.

À vista dessas informações, percebe-se que, apesar de as regiões Norte e Nordeste apresentarem um menor número absoluto de crianças para adoção, comparando com as outras regiões, eles despontam na quantidade de crianças a cada cem mil crianças no sistema.

Por outro lado, parece haver uma possível correlação entre o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) com a quantidade de crianças por cem mil. Isso porque, segundo dados do IPEA,[5] os maiores IDH´s das macrorregiões são, respectivamente, as seguintes: Sudeste,[6] Centro-Oeste, Sul, Norte e Nordeste.

Nesse contexto, os IDH´s mais baixos, são os que apresentam maior número de crianças para adoção a cada 100.000 habitantes, havendo uma relação inversamente proporcional.

V. CONCLUSÃO

Foram trazidas à luz as problemáticas, nas diversas esferas, quanto ao sistema de adoção. Nesse sentido, foi revelado que não apenas um fator influência na capacidade de atuação do sistema adotivo, mas um conjunto deles. Diante dessa análise do grave cenário do sistema adotivo, cabe sugerir algumas propostas de modo a melhorar o bem-estar das crianças:

Como medida central, deve haver uma revisão da legislação, de modo a reduzir a insistência em privilegiar a família extensa. Isso porque utilizar do critério sanguíneo não necessariamente é a melhor solução, já que um lar melhor estruturado pode ser encontrado. Além disso, a afetividade/afinidade não garantem uma convivência harmoniosa, nem condições saudáveis para crescimento;

Ainda, torna-se patente maiores investimentos nas estruturas e criação de varas especiais. Com maiores recursos, seria possível fiscalizar e controlar os processos, exigidos pela lei, de forma célere e trabalhar no melhor interesse da criança.

Por fim, é necessário estimular a adoção tardia, por meio de incentivos. É possível que haja uma mudança de mentalidade dos adotantes e de conscientização por parte deles acerca da problemática. Além disso, o governo pode promover isenções fiscais, no imposto de renda, por exemplo, para as famílias que adotarem crianças mais velhas.

VI. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CADASTRO Nacional de Adoção. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/cnanovo/pages/publico/index.jsf> Acesso em 18 nov. 2020

DIGIÁCOMO, Murillo José. A nova “Lei de Adoção” e a judicialização do acolhimento institucional. Disponível em: <http://www.crianca.mppr.mp.br/pagina-925.html>. Acesso em 18 nov. 2020

IBGE — Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Indicadores sociais mínimos — ISM. Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/17374-indicadores-sociais-minimos.html?=&t=resultados>. Acesso em 18 nov. 2020.

IBGE — Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Indicadores Sociais Municipais 2010: incidência de pobreza é maior nos municípios de porte médio. nov. 2011. Disponível em: <https://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo?busca=1&id=3&idnoticia=2019&t=indicadores-sociais-municipais-2010-incidencia-pobreza-maior-municipios&view=noticia> Acesso em 18 nov. 2020.

PNUD; IPEA; FJP. Desenvolvimento humano nas macrorregiões brasileiras: 2016. — Brasília: PNUD: IPEA: FJP, 2016. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/20160331_livro-idhm.pdf>. Acesso 18 nov. 2020

REIS, Thiago. Demora da justiça faz criança perder a chance de adoção, G1, São Paulo, 29 jun. 2015. Disponível em: <http://g1.globo.com/bemestar/noticia/2015/06/demora-da-justica-faz-crianca-perder-chance-de-adocao-mostra-estudo.html>. Acesso em 18 nov. 2020.

SENADO FEDERAL. A nova lei da adoção, editada em 2009, enfrenta desafios de má estrutura e questão cultural. Disponível em: <https://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/adocao/realidade-brasileira-sobre-adocao/a-nova-lei-da-adocao-2009-desafios-ma-estrutura-cultural.aspx>. Acesso em: 18 nov. 2020

Silveira, Daniel. População que se declara preta cresce 14,9% no Brasil em 4 anos, aponta IBGE, G1, Rio de Janeiro, 24 Nov. 2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/populacao-que-se-declara-preta-cresce-149-no-brasil-em-4-anos-aponta-ibge.ghtml>. Acesso em 18 nov. 2020

[1] REIS, Thiago. Demora da justiça faz criança perder a chance de adoção, G1, São Paulo, 29 jun. 2015. Disponível em: <http://g1.globo.com/bemestar/noticia/2015/06/demora-da-justica-faz-crianca-perder-chance-de-adocao-mostra-estudo.html>. Acesso em 18 nov. 2020.

[2] Vale ressaltar que somente são considerados o tempo dos processos em que há adoção, existem vários outros que não são concluídos. Isso pode fazer com que o trâmite aparente ser mais rápido do que realmente é.

[3] Ainda que seja a menor taxa, ainda é muito alta, tendo 85.08% de aceitação

[4] Silveira, Daniel. População que se declara preta cresce 14,9% no Brasil em 4 anos, aponta IBGE, G1, Rio de Janeiro, 24 Nov. 2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/populacao-que-se-declara-preta-cresce-149-no-brasil-em-4-anos-aponta-ibge.ghtml>. Acesso em 18 nov. 2020

[5] PNUD; IPEA; FJP. Desenvolvimento humano nas macrorregiões brasileiras: 2016. — Brasília: PNUD: IPEA: FJP, 2016. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/20160331_livro-idhm.pdf>. Acesso 18 nov. 2020

[6] A região Sudeste, apesar de ter o maior IDH, também a região com maior número de habitantes, sendo desproporcionalmente maior que o de outras macrorregiões. Isso pode explicar a razão de haver tantas crianças para adoção, mesmo possuindo o maior IDH do Brasil.

Gabriel Rogenfisch é graduando em direito na Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro e diretor executivo na Revista Ágora.

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