Com a vênia dos defuntos bacharéis

Jatene Ellery
Interfaces Revistas
5 min readNov 29, 2021

Mais do que a morte une os enfadonhos Brás Cubas e Ívan Ílyitch. Suas vidas também traduzem trajetórias semelhantes, capturadas, com tons de ironia e pessimismo, pelas penas sem pena de Tolstói e Machado. Para ambos, o pomposo diploma universitário foi o carimbo autorizador de um certo pedigree social necessário para aqueles nascidos sem terras, títulos ou tradição. Ambos os bacharéis, o moribundo e o defunto, inserem-se na narrativa social como arquétipos do profissional do Direito rodeado de privilégios, que ainda se faz presente no Brasil

A São Petersburgo alexandrina de Lev Tolstói e o Rio de Janeiro imperial de Machado de Assis, a despeito do abismo térmico e da distância continental, estão muito próximas. As duas cidades resumem, na década de 1880, um conflito singular entre um passado tradicional, fundado em cediças relações fundiárias — a nobreza servil russa e a aristocracia escravista brasileira –, e um futuro moderno, que dependia da resolução dos vultosos desafios a atravancar seus respectivos países.

Nelas, via-se, pois, a patente necessidade de edificar uma burocracia estatal qualificada. Como contraponto às aspirações renovadoras, frequentemente abafadas, destaca-se o ideário patrimonialista, despontado pelos senhores de terras e percolado por todas as camadas sociais, no qual a separação entre particular e estatal é, quando muito, nebulosa. Nesse interstício entre uma nobreza nem muito bem extinta e uma burguesia tampouco bem gestada, vivem — e morrem — Brás e Ívan.

“[Ivan] [e]ra filho de um funcionário, que fizera em Petersburgo, em diferentes ministérios e departamentos, aquele tipo de carreira que leva as pessoas a uma situação da qual elas, por mais evidente que seja a sua incapacidade para qualquer função de efetiva importância, não podem ser expulsas, em virtude dos muitos anos de serviço e dos postos alcançados; por este motivo, recebem cargos inventados, fictícios, e uns não fictícios milhares de rublos, de seis a dez, com que vivem até a idade provecta.”[1]

Seguindo a tradição familiar, Ívan cursou Direito na universidade, ambiente no qual, para além do destaque acadêmico, vislumbrou oportunidade de aproximar-se da fina flor da sociedade russa. A ambição e falta de escrúpulos, contrastada magistralmente por um senso particular de cumprimento do dever — “[…] considerava como seu dever tudo aquilo que consideravam como tal as pessoas mais altamente colocadas”[2] –, puseram o jovem bacharel no caminho da magistratura. Diante da necessidade de modernização do Estado[3], assumiu o cargo de juiz, que lhe rendeu imenso prestígio e consideráveis privilégios em vida e em morte.

Brás, por outro lado, fazia parte da chamada elite coimbrã, um grupo seleto de brasileiros que, quando jovens, eram enviados para Portugal, a fim de aprenderem as letras jurídicas. Lá receberiam o verniz acadêmico não apenas necessário para distingui-los socialmente dos herdeiros das famílias menos abastadas, mas também suficiente para dar-lhes acesso a um rol de funções estatais cercadas de benesses às custas do Tesouro. Dessa maneira, Brás parece menos preocupado que Ívan ao recontar sua dedicação à faculdade:

“Um grande futuro! […] Grande futuro? Talvez naturalista, literato, arqueólogo, banqueiro, político, ou até bispo — bispo que fosse –, uma vez fosse um cargo, uma preeminência, uma grande reputação, uma posição superior. […] E foi assim que desembarquei em Lisboa e segui para Coimbra. A Universidade esperava-me com as suas matérias árduas; estudei-as muito mediocremente, e nem por isso perdi o grau de bacharel; deram-mo com a solenidade do estilo, após os anos da lei; […] Tinha eu conquistado em Coimbra uma grande nomeada de folião; era um acadêmica estroina, superficial, tumultuário e petulante, dado às aventuras, fazendo romantismo prático e liberalismo teórico, vivendo na pura fé dos olhos pretos e das constituições escritas. No dia em que a Universidade me atestou, em pergaminho uma ciência que eu estava longe de trazer arraigada no cérebro, confesso que me achei de algum modo logrado, ainda que orgulhoso.”[4]

As narrativas expostas deslindam uma concepção da formação jurídica como etapa inicial para uma jornada de ascensão social, possivelmente associada ao provimento de cargo — judiciário ou não, a exemplo de Brás, que desejaria tornar-se parlamentar — custeado pelo Estado. Essa noção peculiar de serviço público, fortemente associada a privilégios, parece redundar da incorporação das antigas práticas patrimonialistas a um sistema estruturado ao redor da qualificação. O termo que une ambos os preços dessa equação é o diploma de bacharel, signo social de ilustração e letramento.

Cubas e Golóvin[5] fazem parte, portanto, de uma elite tecnocrática incipiente, que convive com o velho senhorio rural. Depreende-se, da representação de Tolstói, que a alta-roda dos burocratas copia e adapta os modos de vida da nobreza. O movimento contrário é ilustrado nas Memórias Póstumas: o preenchimento de cargos absorve e abriga a antiga fidalguia, perpetuando suas vantagens nos novos tempos. Diante da instrumentalização do diploma, o ensino do Direito torna-se secundário, reduzindo-se à mera repetição de brocardos latinos de Ulpiano, Celso ou Gaio.

Vale, antes de concluir, tecer um breve comentário sobre a linguagem que, ao menos no Brasil, contribuiu para distanciar a classe jurídica do resto da população. O bacharelismo no país desenvolveu no juridiquês, idioma de contornos barroquistas[6], a barreira intransponível entre a elite letrada da nação e aqueles que nasceram sem a sorte de estudar em uma escola de Direito. Misturando a cediça sabença cultista de Padre Antônio Vieira com o eventual “data venia” e mais recentemente com o inglês dos egressos de LL.M., criou-se um jargão próprio das elites jurídicas, que, até hoje, valem-se do ingresso no serviço público como trampolim para suas ambições pessoais.

Torna-se clara, enfim, a lição que se pode retirar desses clássicos da literatura pré-moderna na discussão a respeito da herança bacharelista do Brasil. Ambas as personagens, em que pese as incontáveis dessemelhanças entre as realidades nas quais se inserem, manipulam o trinômio “prestígio social, formação jurídica, privilégio estatal” a seu favor. De diversas maneiras, esse percurso permanece válido no atual cenário do Direito brasileiro. Pede-se vênia aos defuntos bacharéis, no entanto, para superar o funéreo legado patrimonialista, no esforço de consolidação perfectibilizada dos novos-antigos ideais republicanos no país.

Referências

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2014.

JOBIM, Nelson. O juridiquês como legado barroquista. JOTA, 20 ago. 2020. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-juridiques-como-legado-barroquista-20082020>. Acesso em: 18 nov. 2021.

TOLSTÓI, Lev. A morte de Ivan Ilitch. Trad.: Boris Schnaiderman. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2009.

[1] TOLSTÓI, Lev. A morte de Ivan Ilitch. Trad.: Boris Schnaiderman. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2009, p. 17.

[2] Ibidem, p. 18.

[3] “Surgiram novas instituições judiciárias; precisou-se de gente nova”. v. ibidem, p. 19.

[4] ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Penguin Classics; Companhia das Letras, 2014, pp. 95–96.

[5] Sobrenome de Ívan Ílyitch. Ílyitch é um patronímico que significa “filho de Ilya”.

[6] JOBIM, Nelson. O juridiquês como legado barroquista. JOTA, 20 ago. 2020. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-juridiques-como-legado-barroquista-20082020>. Acesso em: 18 nov. 2021.

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Jatene Ellery
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Undergraduate Student of Law at the Rio de Janeiro Law School — Fundação Getúlio Vargas