Críticas de Policarpo Quaresma

Uma desilusão nacionalista centenária

Victor Portugal
Interfaces Revistas
4 min readNov 25, 2021

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A obra Triste fim de Policarpo Quaresma retrata a história do major Policarpo Quaresma, remontando o contexto do começo da República no Brasil — mais especificamente durante o mandato do Marechal Floriano Peixoto. O major, no começo da obra, apresenta uma visão do Brasil muito semelhante à de um ufanista romântico, possuindo um sentimento nacionalista exacerbado, admirando muito a sua pátria e absolutamente tudo que se origina dela. No decorrer da trama, são perceptíveis diversas denúncias sociais, tais como: o apego das classes mais altas à aparência; as relações conturbadas dos meios políticos; a confusão entre os interesses pessoais e a máquina pública, dentre outras. Contudo, ao final da obra, o autor demonstra uma profunda reprovação ao autoritarismo e, em especial, ao tratamento de prisioneiros ao longo do governo de Floriano Peixoto.

É justamente sobre esse último aspecto que gostaria de comentar. Na terceira parte do livro, Policarpo resolve se alinhar com o lado de Floriano na Revolta Armada, sendo direcionado ao guarnecimento da Ilha das Enxadas no posto de major novamente, após ser ferido em combate. Nesse momento, se depara com as deploráveis condições dos prisioneiros que se encontravam amontoados, muitos deles sem saber do que se tratava a situação pela qual estavam batalhando. Em uma noite, ao ser acordado pela chegada de um oficial do Itamarati, responsável por levar os prisioneiros para o fuzilamento, o major se depara com a realidade do regime e inicia suas reflexões. Os presos foram escolhidos arbitraria e aleatoriamente para serem fuzilados, fato que causa um profundo incômodo no personagem.

Diante da sua insatisfação, Quaresma destina uma carta a Floriano Peixoto, na qual expressa suas opiniões diante da situação que vivenciou e é então preso por isso. E aí que se encontra a ironia: Policarpo é preso e fuzilado por exprimir suas opiniões, as quais proferiu em função do amor pela pátria e por almejar a melhora da sua nação-berço. Não era mais penalizado pela sociedade civil — pela qual fora anteriormente na narrativa durante sua tentativa de alterar o idioma oficial do país para o tupi. Agora era oficialmente punido. Sofria o aprisionamento e a pena capital pela mão dos membros oficiais da sua tão amada nação. Um breve trecho para demonstrar a angústia do personagem:

Iria morrer, quem sabe se naquela noite mesmo? E que tinha ele feito de sua vida? Nada. Levara toda ela atrás da miragem de estudar a pátria, por amá-la e querê-la muito, no intuito de contribuir para a sua felicidade e prosperidade. Gastara a sua mocidade nisso, a sua virilidade também; e, agora que estava na velhice, como ela o recompensava; como ela o premiava; como ela o condecorava? Matando-o (BARRETO, [s.d.], p. 114).

Extraio da leitura do livro, dentre outras críticas, duas que podem ser ainda muito atuais: a pena de morte e a relação que o ordenamento jurídico brasileiro possui com seus prisioneiros. Em primeira análise, cabe ressaltar que o inciso XLVII, alínea “a” do art. 5º da Constituição Brasileira (1988) permite a pena de morte apenas em caso de guerra, sendo os crimes para os quais ela é aplicada regulados pelo Código Penal Militar (1969). Dentre eles, está a traição — motivo pelo qual Quaresma foi fuzilado na obra. Acredito que a obra deva causar uma certa inquietação quanto à aplicação da pena de morte. Quaresma realmente merecia morrer por conta de suas crenças? Nossos juízes devem possuir a discricionariedade de decidir pelo fim da vida de seres humanos? Cabe ressaltar aqui a tamanha contradição em que nosso ordenamento incorre por optar pela opção afirmativa: o bem jurídico da vida é tutelado como um bem sobre o qual não se pode dispor. Essa visão deriva da concepção majoritária em nosso ordenamento, a qual defende a ideia de que a vida é um bem jurídico importante, uma vez que dela deriva a nossa possibilidade de possuir os demais direitos. Queremos atribuir ao Estado maiores capacidades sobre a vida humana que os próprios indivíduos? Acredito que não tenha sido essa a escolha política realizada pela nossa Constituição.

No que se refere à relação de nosso ordenamento com os prisioneiros, ainda é possível perceber uma grande semelhança com o cenário descrito por Quaresma na ficção. A arbitrariedade e o seletividade no sistema penal ainda são traços muito característicos da justiça brasileira. Há uma escolha política nos crimes que são punidos em nosso sistema. A justiça apresenta classes e cores preferenciais para punir, dado que 66,69% da nossa população carcerária é composta por indivíduos negros (BRASIL, 2019). Diante ainda do forte punitivismo direcionado a esses crimes, a população carcerária brasileira contém um número muito maior de prisioneiros que o suportado pelo espaço físico das prisões. É nesse cenário que surge o problema da superlotação dos presídios, que leva à existência de condições desumanas nesses ambientes — 748.009 presos para um total de 442.349 vagas (BRASIL, 2019). Mais uma vez, o quadro não consiste naquele almejado pela Constituição. Muito contrariamente ao que acontece, de fato, a Constituição brasileira persegue o ideal da igualdade — seriamente ferido pela seletividade penal — e assegura a integridade física e moral do preso, além da dignidade da pessoa humana — severamente prejudicados pela superlotação dos presídios.

É nesse cenário que nos encontramos. As mesmas críticas que eram feitas há 106 anos permanecem válidas e atuais. O caminho que desejamos trilhar é o mesmo que o caminho tomado pelo Brasil retratado na obra? Queremos eliminar indivíduos que muito têm em contribuir para o desenvolvimento da nossa nação?

BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. 17. ed. São Paulo: Ática, [s.d.]. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000159.pdf>. Acesso em 25 nov. 2021.

BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento nacional de informações penitenciárias, jul-dez 2019. Disponível em: <https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiN2ZlZWFmNzktNjRlZi00MjNiLWFhYmYtNjExNmMyNmYxMjRkIiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9>. Acesso em: 25 nov. 2021.

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