Destrinchando a “Supremocracia”

Por que a proeminência do STF pode colocar em risco a democracia brasileira?*

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5 min readJun 28, 2021

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A base do fundamento do Estado Democrático de Direito tem origem na obra “O contrato social”[1], de Jean-Jacques Rousseau. Para o filósofo, teórico político e escritor, só a vontade geral pode dirigir as forças do Estado — vontade geral como sendo diferente da vontade de todos, vez que esta se refere ao interesse comum, enquanto a outra representa nada mais do que a soma das vontades particulares. Dessa maneira, as forças soberanas não podem ultrapassar os limites das convenções gerais, tornando as questões particulares. Ou seja, a primazia do poder está na soberania popular e somente nela.

No presente artigo, pretende-se chamar atenção para o perigo iminente à estabilidade do ideal de Estado sugerido primariamente nos escritos de Rousseau como consequência do fenômeno de expansão da autoridade dos tribunais no Brasil e alhures, chamado por Oscar Vilhena Vieira de “Supremocracia”[2]. A pertinência da discussão decorre das múltiplas intervenções do Judiciário em pautas indubitavelmente políticas, tema que ganhou destaque na atual conjuntura mundial em razão das dificuldades que o país tem enfrentado para superar a pandemia do Coronavírus.

Antes de avançar, é essencial conceituar o termo “Supremocracia”. Vieira enxerga o movimento sob duas perspectivas. Primeiro, pode-se extrair a noção de superioridade do Supremo Tribunal Federal em relação às demais instâncias do Poder Judiciário — o que é, entretanto, algo recente. O processo teve como etapa final (2005) a possibilidade de elaboração de súmulas vinculantes pelo STF — mecanismo constitucional dotado de força normativa nas esferas do Judiciário e da administração pública. O outro sentido atribuído ao conceito é relacionado à proeminência do Tribunal, capaz de, por vezes, ofuscar os demais poderes, o que pode significar um ataque à sua independência, cláusula pétrea da Constituição Federal de 1988. Esse último sentido será analisado de forma mais detalhada em breve.

Existem algumas explicações para a crescente expansão da autoridade da corte em nosso país. O próprio desenho institucional concentra mais forças nas mãos do STF e reforça a judicialização da política — movimento no qual questões relevantes do ponto de vista político, social e moral passam a ser decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário, o que descaracteriza a função típica reservada ao meio judicial e invade as competências das instâncias políticas. A Constituição de 88, por sua abrangência e detalhamento, regulamentou uma ampla escala de temas, o que permite que o Supremo seja invocado a qualquer momento. Afinal, quase qualquer assunto pode ser objeto de revisão constitucional. Além disso, essa mesma Constituição extrapolou nas atribuições concedidas ao STF na condição de seu guardião.

O que temos hoje é uma instituição exercendo um papel que, nas demais democracias, seria exercido por três instâncias — tribunal constitucional, foro especializado e tribunal de recursos de última instância (em decorrência da adoção do modelo híbrido de constitucionalidade). Desde a possibilidade de julgar a constitucionalidade de emendas, as omissões dos poderes Legislativo e Executivo, a abertura a múltiplos atores políticos e organizações civis, até a apreciação de atos secundários parlamentares e executivos e a revisão de milhares de decisões de tribunais inferiores em um movimento de supressão de instâncias, tudo isso gera uma situação na qual o STF torna-se arena de debate político, de veto, de “terceiro turno” parlamentar, de firmar posições e de retardar ações. Do Supremo, exigem-se as últimas palavras.

Para além disso , cabe um questionamento quanto aos limites desse poder quase inesgotável do Supremo Tribunal Federal. A corte constitucional, na função de legislador negativo, é responsável pela proteção de regras e sua obstrução quando incompatíveis à Lei Maior . Todavia, se olharmos cuidadosamente para a realidade, é perceptível que o Supremo tem se excedido e atuado também como legislador positivo, criando regras. Função esta, que, em tese, é reservada àqueles que foram eleitos democraticamente pela população brasileira para ocupar as cadeiras nas duas casas do Congresso e que seriam, portanto, sua representação mais fiel.

Em fevereiro de 2019, o STF, em Sessão Plenária, iniciou o julgamento do Mandado de Injunção 4733 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26, que pediam a criminalização da homofobia e transfobia pelo Congresso. Após seis sessões para a conclusão do debate, o resultado foi a equiparação da homo e transfobia ao crime de racismo. A Corte, nesse contexto, atravessou a linha tênue que separa a interpretação e a legislação e ultrapassou suas competências ao criar um tipo penal sem ter passado pela tramitação legislativa. O procedimento correto seria a declaração da omissão do Congresso e a notificação de um prazo para que o tema fosse legislado. Em voto vencido, o próprio Ministro Marco Aurélio, ainda que tenha criticado o Legislativo pelas opções políticas conservadoras em que os parlamentares se agarram, alegou que a ampliação do conteúdo da lei se configuraria como “usurpação de uma competência do Congresso”[3].

Ainda que a urgente — e tardia — criminalização da homofobia e transfobia seja pertinente por representarem extremas injustiças impossíveis de justificação, nesse caso, a “Supremocracia” evidenciou-se ainda mais suprema e interferiu explicitamente em matéria legislativa. O fenômeno talvez seja, no entanto, um sintoma de um problema maior: a falta de representação política nas casas legislativas. A distribuição dos poderes de agenda e veto dentro de um ambiente dividido pelo multipartidarismo fracionado resulta em discussões de difícil consenso e uma consequente estagnação de projetos de lei essenciais à promoção de igualdade e justiça na sociedade brasileira. O sistema funciona precariamente e o Supremo é acionado para atender certas demandas sociais, agindo como um ator político. Não faltaram episódios como esse na pandemia da covid-19. Um exemplo foi a concessão de liminar em Ação Civil Pública que obrigou o Estado do Maranhão a decretar lockdown — matéria que deveria ser assentada no nível de política pública.

Por fim, ressalto que, se por um lado, o ativismo do Supremo Tribunal Federal pode ser entendido como relevante para assegurar valores do Estado Democrático de Direito sob a perspectiva das apreciações de temas como a criminalização da homofobia, por outro, suas invasões frequentes podem também gerar sérios riscos ao equilíbrio entre os três poderes em uma democracia já fragilizada e instável como a brasileira. Como já abordado, se o fundamento da democracia é a vontade geral e o Poder Judiciário não é um órgão representativo, parece contraditório defender a expansão desenfreada de sua autoridade. É necessário, diante disso, com relação ao Supremo, a “racionalização de sua jurisdição e lapidação de seu processo deliberativo”[4], nas palavras de Oscar Vilhena Vieira.

[1]: ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. Tradução de Tiago Rodrigues da Gama. São Paulo: Russel, 2006.

[2]: VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista Direito GV, São Paulo, vol. 4, n. 2, p. 441–464, jul./dez., 2008. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/revdireitogv/article/view/35159/33964>. Acesso em: 16 de jun. de 2021.

[3]: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n. 26 . Relator: Ministro Celso de Mello. Distrito Federal. Julgado em 13 de jun. de 2019. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADO26votoMAM.pdf >. Acesso em: 16 de jun. de 2021.

[4]: VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista Direito GV, São Paulo, vol. 4, n. 2, p. 441–464, jul./dez., 2008. p. 457. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/revdireitogv/article/view/35159/33964>. Acesso em: 16 de jun. de 2021.

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