#PraTodosVerem a imagem mostra uma mão segurando quatro cartões de crédito na frente de uma parede branca. A foto é de Avery Evans.

Há males que vêm para o mal

O efeito cobra da PL 1.166/2020

Joao Pedro
Interfaces Revistas
7 min readDec 8, 2020

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1 — Introdução

Há, primeiramente, a necessidade de explicar o motivo pelo qual mais um, dentre tantos outros artigos sobre essa lei, está sendo escrito. Ao procurar as matérias sobre a PL 1.166/2020, que limitará em 30% o juros do cartão de crédito e cheque especial durante o estado de calamidade pública provocado pelo Covid-19, encontrará em todos eles uma similaridade: uma breve explicação do trâmite para a sua aprovação (a sua ida para a Câmara, por exemplo), do que o projeto se trata e suas possíveis consequências, que, quando demonstradas, são apenas no final do texto e, ainda assim, muito brevemente. O objetivo desse texto, pelo contrário, será mostrar não apenas o ônus, mas as suas possíveis causas, caso essa lei passe, com base em conceitos jurídicos e econômicos.

Há, ainda, mais uma questão que pode ser questionada ao ler esse artigo: essa matéria está sendo abordada por um estudante de direito, e não um de economia. É importante entender que o direito e a economia são dois campos de estudo que se intercedem, sendo papel do jurista não apenas ver uma lei na ótica jurídica, mas também na visão econômica. Isso é possível, principalmente, devido a introdução da Análise Econômica do Direito, área do direito que vem crescendo de maneira significativa no Brasil e no mundo, tendo como seu precursor principal o economista Ronald Coase, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 1991, devido aos seus dois principais artigos “O Problema do Custo Social” e “A Natureza da Firma”[1]. Assim, o conceito de eficiência — como visto na economia — é introduzido no direito, principalmente na formulação de políticas públicas.

2- Objetivos

Quando um Projeto de lei está em tramitação, o legislador deve sempre se fazer uma pergunta essencial: Qual problema essa lei está visando solucionar? No caso do PL 1.166/2020, essa resposta é bem fácil, os altos juros que os bancos cobram no cartão de crédito e cheque especial, que chegam, respectivamente a 300% e 110% a.a — além de usar a desculpa, no art. 2°, caput, de promover a educação financeira do consumidor. Essa justificativa, porém, não tem conexão com a realidade, visto que o consumidor achará que terá mais oportunidade de compra mais baratas, dado que os juros serão menores. O problema dos altos juros vem sendo visado por entidades econômicas por um período de tempo considerável, como o Banco Central (BACEN), que implementou políticas como o BC+[2] e o Crédito Positivo, — que até os dias de hoje é alvo de severas críticas, principalmente devido ao seu caráter compulsório — visando solucionar uma falha de mercado conhecida como “assimetria de informação”. Tal falha de mercado consiste em um cenário em que há dois agentes, um comprador e um vendedor. Porém, quando a transação é efetuada um dos agentes possuem mais conhecimento do produto do que o outro, um exemplo simples é um vendedor de carros usados que sabe que o carro que ele está vendendo tem um problema, porém não avisa ao potencial comprador. Assim, o agente compra o carro sem saber que esse tem um defeito. O que acontece no caso dos bancos é que, sem o crédito positivo, poderia haver casos em que o possível devedor possuía dívidas de outros empréstimos e isso não fosse de conhecimento da instituição o que, por sua vez, aumentava o risco do banco. Com o maior risco o banco repassava para o aumento dos juros.

Ao ler a ementa do Projeto de lei, no entanto, fica claro que tanto quanto o legislador está consciente do problema, ele não sabe o motivo pelo qual esse problema ainda existe no nosso país e, ao tentar solucioná-lo, atacou o motivo errado, e não apenas não resolverá, mas trará uma magnitude de ônus muito excessiva em comparação ao bônus promovido pela lei. Assim, serão apontadas algumas causas desse problema sistemático que o Brasil sofre.

3 — REFERENCIAL TEÓRICO

Segundo uma pesquisa realizada em maio pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), 66,5% das famílias brasileiras relataram ter alguma dívida[3]. Porém, colocar a culpa simplesmente na inadimplência não é o objetivo, pois ela, em si, não é um problema, afinal, os bancos podem cobrar aos inadimplentes. Em tese, sim, porém, o Relatório “Justiça em Números”, do CNJ, demonstra que em 2018, dentre todos os órgãos do Poder Judiciário, havia um total de 78.691.03 processos pendentes, ou seja, caso os bancos tentem, de fato, cobrar os maus pagadores, mesmo que consigam fazer a cobrança, tomarão um tempo muito alto para que isso ocorra. Isso tem uma implicação prática: o famoso “subsídio cruzado” (que nesse caso não é, de fato, um subsídio), isso significa que o banco calculará uma estimativa do número de inadimplentes que ele não conseguirá cobrar, e implementa o que seria seu prejuízo nos juros do crédito, o que faz com que mesmo o bom pagador sofra com as consequências do inadimplemento dos demais. Isso demonstra como problemas estruturais do nosso sistema, seja o jurídico, educacional, financeiro político ou qualquer outro afetam todas as instituições, mesmo que não haja uma ligação direta. Outro problema já bastante conhecido pela população brasileira é a burocracia excessiva que existe no país. Segundo o ranking “Doing Business” realizado pelo Banco Mundial, que mede o nível de burocracia sobre as empresas no mundo, o Brasil está na 124° posição, entre 190 países nos quais a pesquisa foi realizada, e a burocracia tem uma ligação diretos com os altos juros. O famoso economista Yoram Barzel define os custos de transação como “Os custos de transferir, capturar e proteger os Direitos de propriedade”. Assim, quanto maior a burocracia, mais difícil será para as instituições financeiras elaborarem um contrato que consiga, de fato, cumprir o seu papel, o que fará com que o banco tenha que aumentar os juros para compensar esse alto custo. Esse conceito mostra mais uma grave deficiência da educação financeira no Brasil: A população, em sua grande maioria, mesmo os legisladores, pensam em custos apenas na forma de dinheiro, — conhecido como custos contábeis — o problema é que esses custos compõem apenas uma parte do que tem de ser levado em consideração para o lucro de uma empresa, há também os custos de oportunidade[4], custos de transação — que além de demandar mais dinheiro, fazem com que demore mais tempo — e várias outras variáveis implícitas, conhecidas também como custo econômico. Há, na verdade, inúmeros motivos que contribuem para esse cenário visto no sistema financeiro brasileiro, e seria impossível citar todos aqui, porém, foi demonstrado que o problema vai muito além de uma suposição, feita por muitos, que a taxa de juros chegou ao patamar atual pois os bancos querem “extorquir” a população.

4 — CONSIDERAÇÕES FINAIS

Visto isso, deve ter ficado claro que o projeto de lei, caso aprovado, não trará benefícios para a sociedade. O que acontecerá, na prática, é que o risco do banco para fazer o empréstimo, principalmente para pessoas de renda baixa, mesmo que sejam bons pagadores, será muito alto para a remuneração máxima de 30% de juros. É bem simples: vale a pena correr o risco do tomador do empréstimo virar inadimplente — visto que o banco não irá para o Judiciário, pois é muito custoso, nem irá poder transferir a potencial perda para os juros -, por uma remuneração máxima de 30% a.a? A resposta é que não vale a pena. Por isso, os bancos só disponibilizarão crédito aos que representam um “menor” risco, ou seja, a população de alta renda brasileira, e a população de renda mais baixa, mesmo que sejam bons pagadores, não obterão crédito, independentemente de serem bons ou maus pagadores, não valerão o “risco” de se emprestar dinheiro, visto que a quantia recebida pelo banco não será alta o que causará escassez.

Dito isso, uma lição valiosa apresentada aqui é que o problema de altos juros no Brasil não será resolvido por uma lei sozinha, por melhor que ela seja, — o que não é o caso do PL em questão — pelo contrário, é necessária uma profunda mudança, desde mudanças nas estruturas das instituições brasileiras a reformas legislativas, que serão feitas passo a passo, e não resolvidas de uma vez, como é a proposta da lei em questão.

5 — REFERÊNCIAS

ALVARENGA, Daniel H. C. Agenda BC+ e a democratização do sistema financeiro, Jota, 23 nov. 2019. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/agenda-bc-e-a-democratizacao-do-sistema-financeiro-23112019>. Acesso em: 04/10/2020

COASE, Ronald H. A firma, o mercado e o direito. 2° edição. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2017.

FRANCO, Paulo. O que esperar de positivo do novo cadastro positivo, Jota, 21 mai. 2018. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-que-esperar-de-positivo-do-novo-cadastro-positivo-21052018>. Acesso em: 04/10/2020

O QUE É custo de oportunidade, como calcular e exemplos, Blog Rico, 16 jul. 2018. Disponível em: <https://blog.rico.com.vc/custo-oportunidade-o-que-e>. Acesso em: 03/10/2020

PORTO, Antônio Maristello. Curso de Análise Econômica do Direito. 1° edição. São Paulo: Grupo GEN, 2020.

PRADO, Matheus. Brasil tem 66,5% das famílias endividadas; descubra 5 opções de crédito, CNN Brasil, São Paulo, 21 mai. 2020. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/business/2020/05/21/brasil-tem-66-5-das-familias-endividadas-conheca-opcoes-de-credito>. Acesso em: 03/10/2020

[1] COASE, Ronald H. A firma, o mercado e o direito. 2° edição. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2017.

[2] FRANCO, Paulo. O que esperar de positivo do novo cadastro positivo. Disponível em:https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-que-esperar-de-positivo-do-novo-cadastro-positivo-21052018. Acesso em: 04/10/2020

[3] PRADO, Matheus. Brasil tem 66,5% das famílias endividadas; descubra 5 opções de crédito. Disponível em:https://www.cnnbrasil.com.br/business/2020/05/21/brasil-tem-66-5-das-familias-endividadas-conheca-opcoes-de-credito. Acesso em: 03/10/2020

[4] O QUE É custo de oportunidade, como calcular e exemplos, Blog Rico, 16 jul. 2018. Disponível em: <https://blog.rico.com.vc/custo-oportunidade-o-que-e>. Acesso em: 03/10/2020

João Pedro Paravidino é graduando de direito pela Fundação Getúlio Vargas — FGV Rio

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