In Tang veritas

Ou como o pluralismo jurídico pode ser uma fonte de opressão.

João Paulo Aquino
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6 min readNov 29, 2021

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Dentre os temas de sociologia jurídica aquele talvez mais discutido é o pluralismo jurídico. Definido por Boaventura de Souza Santos como quando “no mesmo espaço geopolítico vigoram (oficialmente ou não), mais de uma ordem jurídica” (SANTOS, 1993, p. 27), é geralmente tratado com muito entusiasmo e festa. E como um dos prazeres secretos da vida é estragar a felicidade de outros, gostaria de azedar um pouco o poncho, porque, se a existência de mais de um sistema jurídico pode criar formas de solução de conflito, também pode, e mais frequentemente do que se imagina, engaiolar e oprimir. Poderia me utilizar de diversos materiais, sejam pesquisas empíricas, relatos pessoais, ou garbosas teses acadêmicas, mas, por simplicidade, parece-me mais útil sacar a literatura nacional contemporânea, no caso, Torto Arado de Itamar Vieira Júnior.

História não muito diferente, nem muito inovadora; em certa medida verdadeiro genérico daquele motivo já exaurido na literatura brasileira nordestina. E, por essa razão, o melhor exemplo para expressar os males do pluralismo jurídico. Males porque, aos que vivem em regime semifeudal, proibidos de construir casas sólidas, de ter escola, sujeitos a um senhor de terras que negar-lhes quaisquer liberdades que lhes sejam inconvenientes, não se pode falar de um pluralismo jurídico bom, mas de um pluralismo jurídico opressor.

Uma frase narrada por Bibiana é simbólica da circunstância: “poderia cercar seu quintal e fazer roça na várzea nas horas vagas. Poderia comer e viver da terra, mas deveria obediência e gratidão aos seus senhores” (VIEIRA JÚNIOR, 2019, p. 137). É simbólica, porque expressa a exata forma como o pluralismo jurídico se revela. Apresenta-se como cheio de boas intenções, e prometendo algo muito bom, mas, esconde, ao final, uma potência horrível.

Contudo, é, a frase, a melhor descrição do sistema de relações na comunidade de Água Negra (local onde Torto Arado se passa). Explicita que a ordem ali estabelecida tem como fundamento, não a lei do Estado, mas os desejos de um suserano. É uma relação quase feudal. Relação de vassalagem expressa pelas atitudes de Zeca Chapéu Grande, que, embora líder religioso e comunitário, não reage aos “impostos” estabelecidos pelos proprietários, tomados como um terço da plantação de cada camponês. “Levam batatas, levam feijão e abóbora. Até folhas pra chá levam (…) Que usura! Eles [os Peixoto] já ficam com o dinheiro da colheita do arroz e da cana” (VIEIRA JÚNIOR, 2019, p. 32). Fato notório porque na prática, instituiu-se um imposto feudal, o que contrasta com o silêncio sobre o imposto estatal, cuja a única explicação plausível é o imposto estatal ser desconhecido aos moradores. A conclusão é ser tão total o controle que o Estado não é capaz de entrar nos domínios dos Peixoto nem para recolher impostos.

E, porque incapaz de se fazer presente, são, os moradores, objeto de opressão aos quais foi negada a humanidade. “Queimaram nosso galinheiro, soltaram animais para destruir nossas roças. Quiseram impedir a pesca com a desculpa que era para proteger o rio’”(VIEIRA JÚNIOR, 2019, p.165). A revolta diante dos desmandos de Salomão expressa claramente a situação de desespero dos moradores, reduzidos, pelo novo proprietário de Água Negra, a meros objetos, sujeitos às suas vontades e interesses.

Alienados de qualquer direito fundamental, precisam se reunir às escondidas, andar pé ante pé para organizar alguma resistência contra o tirano. No entanto, mesmo quando crime covarde ocorre contra um dos líderes dos camponeses, a resposta da polícia, força do Estado é: “morto numa disputa de tráfico de drogas na região” (VIERAJÚNIOR, 2019, p.161). Omissão do Estado.

Apresentar mais exemplos é inútil, não só ficaria cansativo como repetitivo. Agora que o poncho já não guarda mais aquele aspecto agradável, tratemos de azedá-lo de vez. O pluralismo jurídico não implica necessariamente em soluções boas para problemas, porque, em essência, o problema do Estado, se tomarmos sua definição weberiana monopólio da violência física legítima (WEBER, 2015, p. 62), não é ser detentor da força, mas ser monopolista. Porque, não fosse monopolista, seria obrigado a fornecer melhores condições aos seus habitantes, com o intuito de atraí-los para si[1]; é assim que funcionam os incentivos fiscais, era assim que funcionava no Sacro Império Romano Germânico (WILSON, 2016), e por isso naquela Germânia pululavam as cidades livres. Do contrário, havendo monopólio, o Estado não terá incentivos para atender aos interesses dos cidadãos; nada diferente de qualquer monopólio comercial. Não é, pois, o pluralismo jurídico solução alguma para opressão se houver apenas acesso à estrutura jurídica paralela, como era o caso dos trabalhadores de Água Negra.

Contudo, como não desejo ser expulso de uma vez por todas da festa do pluralismo jurídico, tratemos de transformar esse poncho azedo em vinho. Parece que, se o leitor, prestou atenção e não apenas leu como um não muito inteligente bovino, há uma salvação para o pluralismo jurídico. Se o problema é, essencialmente o monopólio, então, é previsível que onde haja apenas um sistema jurídico as leis tendam a ser mais voltadas ao interesse do monopolista do que ao do indivíduo, e, inversamente, as leis tenderão a ser mais interessantes ao indivíduo se houver mais de um sistema jurídico acessível. Portanto, é possível prever o grau de liberdade de um sistema jurídico paralelo pelo grau de acessibilidade[2] de sua contraparte. Obviamente há diversas variáveis em jogo, como a forma que o outro sistema responderá, se pacificamente ou não (podemos pensar na relação Estado-favela como um exemplo de resposta violenta). Portanto, parece que, estabelecendo esse quadro teórico é possível, não apenas explicar e prever quando um sistema jurídico paralelo tenderá a contribuir para a ampliação ou restrição de direitos, como, também, evitar que não seja expulso a ponta pés de uma muito interessante festa e ainda contribuir para apurar o paladar dos convidados, mostrando-lhes que muita vez aquele ponche tão cobiçado não passa de suco Tang.

Referências:

SANTOS, Boaventura de Sousa. Notas sobre a História Jurídico-Social de Pasárgada. Introdução Crítica ao Direito. 4 ed.. Brasília: Universidade Federal de Brasília (UnB), 1993. p. 27–42.

VIEIRA JÚNIOR, Itamar. Torto Arado. São Paulo: Todavia, 2019.

WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. Tradução: Marco Antonio Cassanova. São Paulo: Martin Claret, 2015.

WILSON, Peter H. The Heart of Europe: A History of the Holy Roman Empire. Massachussets: Belknap Press of Harvard University Press, 2020.

[1] Esse ponto talvez mereça uma explicação a parte, que, no entanto, desviaria a atenção do tema principal deste texto. Resumidamente é uma aplicação das leis econômicas e do conhecimento adquirido acerca dos monopólios; regra básica e comum, quanto maior a competitividade melhor o produto. Em monopólio, como não há competição, a produção tende a se voltar exclusivamente aos interesses do monopolista, de forma que o produto é, não só caro, como de péssima qualidade. Embora a atuação do Estado não seja no mercado, não é impossível fazer paralelos se tratarmos impostos como o pagamento por um serviço, e, considerando isso, supormos que pudessem os indivíduos, a qualquer momento, não pagar os impostos nacionais. Tomemos um exemplo; é óbvio que se por mágica brasileiros pudessem pagar os impostos da Alemanha e, com isso, receber serviços públicos alemãs, sem ter de sair de sua nação, todos parariam de pagar impostos brasileiros e pagariam os germânicos. Isso é, os incentivos de competição que o Estado sofre na “produção de direitos” são os mesmos que qualquer empresa sofre na produção de qualquer bem, de forma que, maior competição implicaria em melhores direitos. Essa é apenas uma breve exposição, muito incompleta, sobre a qual já espero mal-entendidos enormes, mas que se mostra indispensável à compreensão do argumento central do texto.

[2] Falamos aqui de acessibilidade porque, muitas vezes, um consumidor não consegue melhor serviço por falta de acesso, em geral por não ter conhecimento de sua existência, ou porque, de fato, é impossível encontrá-lo.

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