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Jabuticabas constitucionais

Análise comparativa da Constituição brasileira de 1988 diante dos demais produtos históricos do constitucionalismo.*

Jatene Ellery
11 min readJun 30, 2021

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PROPOSTA DE TRABALHO[1]

O presente trabalho busca investigar a similitude da Constituição da República Federativa do Brasil (1988) em relação aos demais produtos do constitucionalismo histórico global. Para tanto, a “Constituição Cidadã” será confrontada não apenas com as demais constituições brasileiras, mas também com centenas de suas contrapartes internacionais. Desempenha-se, portanto, um esforço de Direito comparado, entendido como:

[…] a disciplina científica que tem por objeto o estudo comparativo-sistemático de instituições ou sistemas jurídicos diversamente situados no espaço ou no tempo, com a finalidade de estabelecer os pontos comuns e as diferenças existentes entre eles, para compreender a sua evolução e determinar os parâmetros para o seu aperfeiçoamento e reforma.[2]

Compreende-se que a composição de uma carta política deriva de um processo de empréstimo e importação que pode ocorrer em grau mais ou menos acentuado. Deseja-se, aqui, mensurar objetivamente este grau de identificação, tendo como ponto focal a presente Lei Maior brasileira, a partir das ferramentas da Ciência de Dados aplicadas aos dados do Comparative Constitutions Project.

JUSTIFICATIVA

Ao recontar o processo de confecção da presente Constituição brasileira, Nelson Jobim explica que a complexa divisão da Assembleia Nacional Constituinte em numerosas subcomissões demandou uma empreitada de classificação com base no arquivo de constituições ocidentais mantido pelo Senado Federal[3]. O jurista, à época, deputado constituinte, esclarece que a solução criativa consistiu em — literalmente — recortar os títulos e capítulos desses documentos e promover uma classificação de acordo com a frequência dos temas nas cartas políticas. A divisão em “matéria absolutamente constitucional”, “matéria relativamente constitucional”, “matéria relativamente não constitucional” e “matéria idiossincrassicamente constitucional” orientou o estabelecimento das oito comissões.

Objetiva-se, neste trabalho, investigar o impacto desse recurso ao constitucionalismo estrangeiro — e brasileiro pretérito — sobre a Carta de 1988. Com isso, o artigo visa determinar se, de fato, a Lei Maior brasileira é tão peculiar quanto propugnam alguns[4]. Ao contrapô-la com os demais textos, muitos dos quais lhe serviram de inspiração confessa, levanta-se a hipótese de que a Constituição Federal não se trata de um “ornitorrinco jurídico”, isto é, uma figura única dentre o universo estudado. Espera-se que, dessa forma, sejam refutadas críticas que buscam deslegitimar a Constituição Cidadã por meio da atribuição de diversos insucessos político-institucionais dos últimos trinta anos às supostas “jabuticabas”[5] nela contidas.

TRABALHO COM DADOS

Essa seção trata da aplicação dos instrumentos da Ciência de Dados no trabalho com informações relativas à presença de características da Constituição de 1988 no texto dos demais produtos do constitucionalismo global. Aos leitores que não se interessarem pelas vicissitudes metodológicas da programação que permitiu essa análise em massa, sugere-se que retomem a leitura a partir da próxima seção, “Análise dos Resultados”.

Feita a ressalva, os dados para a pesquisa foram obtidos a partir Comparative Constitutions Project, projeto coordenado por Zachary Elkins, Tom Ginsburg e James Melton, que reúne informações quantitativas sobre diversas constituições produzidas ao longo da história. A tabela formada dispunha de aproximadamente 1.500 colunas e 15.000 linhas com os “marcadores”, isto é, as informações específicas que fundamentam esse trabalho. Cada coluna estava associada a uma característica específica identificada pela equipe de Elkins, Ginsburg e Melton e cada linha representa uma versão de constituição por eles registrada. Escreveu-se um código na linguagem Python que extraiu e organizou os dados, à luz do “Codebook”[6] fornecido pelo projeto — documento que explica a definição de cada marcador e os possíveis valores, ou respostas, a eles vinculados.

Em seguida, foram identificados dois possíveis óbices à análise dos dados: não só o dataframe registrava a existência de uma constituição cujos dados não constavam na tabela, mas também o projeto optou por registrar as diferentes versões de uma mesma constituição como constituições distintas, de modo que havia diversas constituições repetidas. Para resolver o primeiro entrave, eliminaram-se as células vazias. Já para excluir as constituições repetidas, desenvolveu-se um algoritmo que deixaria apenas a versão preenchida mais moderna daquela constituição[7].

Então, definiu-se uma função, chamada “const_compare”, que recebia como argumentos o nome do país e o ano associado a um sistema constitucional[8]. Percorrem-se as colunas do dataframe, extraindo as frequências relativas de cada característica particular associada a um aspecto (ou marcador). Contrapondo-se a característica presente na Constituição brasileira de 1988 à lista de frequências relativas, define-se por “similitude” o valor associado àquela característica específica do Brasil na lista geral.

No entanto, notou-se a presença de certos percentuais extremamente diminutos, que, sob investigação atenta, remetiam-se a marcadores com respostas discretas, como “length”, que informa o número de palavras na constituição, e “rghtwrds”, relativo ao número de palavras na seção de direitos fundamentais da carta política. Por isso, a armazenagem de “percentile” em “list_percentile” submete-se à uma barreira de frequência de 5%. As características que de fato ocorriam muito raramente foram identificadas incidentalmente e repostas no mecanismo da função.

Quando operada em toda sua potencialidade, a função “const_compare” imprime a média, a mediana, a moda e o desvio padrão das similitudes, assim como a moda das posições relativas — que são valores que indicam a posição ordinal daquela característica na lista com todas as respostas[9]. Ademais, a função também imprime dois histogramas, que representam, graficamente, a distribuição das similitudes e das possíveis frequências relativas. Por fim, a função “const_compare” devolve como “retorno” a média das similitudes, expressa em percentual.

Nada obstante, as métricas obtidas da função “const_compare” podem parecer descoladas da realidade, afinal há um salto lógico entre afirmar que certa constituição tem similitude de 50% com as demais constituições e explicar que a média das frequências relativas de cada característica de uma constituição quando comparada a suas contrapartes é 50%. Além disso, não há parâmetro para balizar essas similitudes, ou seja, o percentual não traduz, prima facie, nenhum dado de consciência que possa ser apresentado de forma conclusiva. Por exemplo, poder-se-ia considerar uma constituição com similitude média de 60% uma carta “comum” ou “pouco peculiar”? O que, de fato, significa essa similitude?

Para tentar atacar essa dificuldade, decidiu-se submeter todas as constituições remanescentes no dataframe à função “const_compare”. Esse processo gerou uma série chamada “global_series”, da qual se pode obter a média das similitudes médias e um histograma com sua distribuição.

As conclusões deste trabalho não estão livres de limitações. Por exemplo, ele se baseia exclusivamente nas categorias criadas pelo Comparative Constitutions Project, bem como na acurácia da classificação de suas respostas e de seu preenchimento. Alguns marcadores foram deixados de lado, pois a explicação sobre seu conteúdo constava apenas na versão estendida da tabela, o que aumentaria sobremaneira a capacidade computacional necessária para trabalhar com os dados. A falta de informação em certas linhas também pode tê-las excluído de consideração.

No mais, a própria versão do banco de dados já data de 7 anos no passado, além de não conter informações sobre os anos mais recentes à sua publicação. A Constituição Cidadã, utilizada no trabalho, por exemplo, encontra-se dezesseis anos defasada. Devem-se considerar os fatos de que todas as cartas foram traduzidas para o inglês e de que a comparação de conceitos jurídicos, sobretudo em ordenamentos de diferentes Estados, sofre de limitações intrínsecas. Registra-se, por derradeiro, que a mecânica da função “const_compare” inevitavelmente contrapõe cada constituição a si mesma, o que eleva, mesmo que pouco, as similitudes[10]. Nada obstante, crê-se que os resultados são mormente confiáveis de modo que serão discutidos a seguir.

ANÁLISE DOS RESULTADOS

Ao se submeterem os argumentos “Brazil” e 1988 à função “const_compare”, obtém-se o seguinte resultado:

A similitude média é de aproximadamente 59.2%.

A mediana das similitudes é de aproximadamente 66.8%.

A moda das similitudes é de aproximadamente 70.8%.

O desvio padrão das similitudes é de aproximadamente 29.2 pontos percentuais.

A moda da posição relativa das características é 1º de 3.

Figura 1: Histograma das similitudes | (No eixo das abcissas, representam-se os percentuais de similitude e, no eixo das ordenadas, representam-se o número de marcadores com aquele percentual.)
Figura 2: Histograma das posições relativas | (No eixo das abcissas, representam-se as posições relativas das características da Constituição de 1988, enquanto, no eixo das ordenadas, representam-se o número de marcadores que apresentam essa posição relativa)

À primeira vista, portanto, os dados parecem corroborar a hipótese inicial de que a Constituição brasileira de 1988 não se mostra tão peculiar, uma vez que ela apresenta grau elevado de similitude média, beirando os 60%. A mediana das similitudes, superior a 66% elimina dúvidas de que essa média esteja distorcida por poucos valores muito elevados, pois, compreende-se que metade das frequências das características corresponde a valores iguais ou superiores à mediana. A moda das posições relativas — 1º de 3, 1º de 4, 1º de 1 e 3º de 3 –, em conjunto com a repetição de diversas “primeiras posições”, também alude ao caráter frequente das características. A Figura 1 ilustra bem essa concentração de frequências entre 70% e 85%, com alguns valores muito próximos a 100%[11] que convivem com um aglomerado de ocorrências entre 5% e 10% (0.05 e 0.1 na abcissa da Figura 1) — dinâmica evidenciada pelo notável desvio padrão de quase 30 pontos percentuais. Sugere-se que essa concentração relativa, não desprezível, de características infrequentes justifica a percepção de idiossincrasia que ronda a Carta da República.

No entanto, quando se interpõem todas as constituições de “dados” à função “const_compare”, as conclusões inicialmente obtidas caem por terra:

A média das similitudes médias é de 64.1%.

O desvio padrão é de 2.6 pontos percentuais.

Acompanhada do histograma:

Figura 3: Histograma com similitudes médias de cada constituição | (No eixo das abcissas, encontram-se as similitudes médias para cada constituição, enquanto no eixo das ordenadas, está a quantidade de constituições com aquela similitude média[12])

Em primeiro lugar, esses resultados indicam uma concentração absoluta das similitudes entre 55% e 70%, o que pode ser um indício de que as constituições, de fato, são, em medida significativa, tributárias umas das outras — ou, ao menos, de que existe um número limitado de temas, e de opções jurídico-políticas dentro desses temas, à disposição do constituinte. Elas se dispõem em uma organização similar a uma curva normal, com leve desvio para os valores inferiores à média. Não parece haver uma constituição que se mostre excepcionalmente mais parecida com as demais, ou seja, um “tipo ideal” de constituição, nem uma constituição especialmente diferente ou única.

Isto posto, chega-se à conclusão de que a Constituição brasileira de 1988 não é tão comum assim. De fato, ela está quase 5 pontos percentuais abaixo da média, aproximadamente o dobro do desvio padrão, o que denota um caso especial de fuga ao padrão. Apenas cerca de 40 das mais de 500 constituições no universo de comparação apresentam similitude igual ou inferior à similitude média da Constituição Cidadã. Dentre as constituições comparadas, nossa carta política figura entre as mais peculiares, já que sua similitude média dista para além do desvio padrão da média das similitudes médias dos demais produtos do constitucionalismo. Em palavras simples: todas as constituições são razoavelmente parecidas, mas a Constituição de 1988 é menos parecida com as demais do que estas são entre si. Esse achado, por conseguinte, refuta, quiçá categoricamente, a hipótese inicial.

CONCLUSÃO

A hipótese inicial, de que a Constituição da República Federativa do Brasil, não se trata de uma figura única no universo fundado, parece falsa. Para sustentá-la, poder-se-ia recorrer à grande concentração, ilustrada pela Figura 3, entre as similitudes médias das constituições. Certamente, o processo explicado por Nelson Jobim sugere que o esforço de criação constitucional se vale em grande medida da remissão ao passado, tanto do próprio país quanto de alhures. No entanto, a similitude média da Constituição Cidadã fixa-se em grau relevantemente inferior à média das similitudes das demais constituições. Possivelmente, essa discrepância se deve à concentração relativa de características com menos de 10% de frequência na Lei Maior brasileira, ou seja, pela pressão estatística de diversas características extremamente infrequentes.

Com isso, assiste razão à opinião majoritária de que o ordenamento constitucional brasileiro tem características únicas — e, potencialmente, peculiares. Adversamente, os dados não podem dar esteio aos críticos da Carta Magna, visto que foge ao escopo do estudo qualquer análise dos efeitos da “peculiaridade” na experiência constitucional. Na verdade, mesmo que a hipótese inicial esteja incorreta, a defesa da manutenção da Constituição de 1988 ainda e sempre é válida, uma vez que essas “jabuticabas” podem ser indícios da abordagem de desafios específicos à sua realidade histórica.

REFERÊNCIAS

ARANTES, Rogério Bastos; COUTO, Cláudio Gonçalves. Uma Constituição Incomum. In: CARVALHO, Maria Alice Rezende de; ARAÚJO, Cícero; SIMÕES, Júlio Assis (org.). A Constituição de 1988: Passado e Futuro. São Paulo: Editora HUCITEC ANPOCS, 2009.

ELKINS, Zachary; GINSBURG, Tom; MELTON, James. Characteristics of National Constitutions, Version 2.0. Comparative Constitutions Project. Última modificação: 18 abr. 2014. Disponível em http://www.comparativeconstitutionsproject.org. Acesso 27 mar. 2021.

ELKINS, Zachary; GINSBURG, Tom; MELTON, James. Characteristics of National Constitutions: Codebook. Comparative Constitutions Project. Disponível em http://www.comparativeconstitutionsproject.org. Acesso 27 mar. 2021.

JOBIM, Nelson de Azevedo. A Constituinte vista por dentro — vicissitudes, superação e efetividade de uma história real. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (coord.). Quinze Anos de Constituição: História e Vicissitudes. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

OVÍDIO, Francisco. Aspectos do direito comparado, Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 79, p. 161–180, 1984. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67009>. Acesso em: 10 abr. 2021..

[1] Trabalho produzido do contexto da disciplina “Ciência de Dados Jurídicos”, ministrada no primeiro semestre de 2021 pelo Prof. Guilherme Almeida na FGV Direito Rio e revisitado no âmbito do Field Project “Escrita Acadêmica”, coordenado por Ligia Thomaz Vieira Leite.

[2] OVÍDIO, Francisco. Aspectos do direito comparado, Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 79, p. 161–180, 1984. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67009>. Acesso em: 10 abr. 2021.

[3] JOBIM, Nelson de Azevedo. A Constituinte vista por dentro — vicissitudes, superação e efetividade de uma história real. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (coord.). Quinze Anos de Constituição: História e Vicissitudes. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

[4] Cf., por todos, ARANTES, Rogério Bastos; COUTO, Cláudio Gonçalves. Uma Constituição Incomum. In: CARVALHO, Maria Alice Rezende de; ARAÚJO, Cícero; SIMÕES, Júlio Assis (org.). A Constituição de 1988: Passado e Futuro. São Paulo: Editora HUCITEC ANPOCS, 2009.

[5] “É comum relacionar lances inusitados da política nacional à jabuticaba, fruta silvestre que só existe no Brasil.” (V. RODRIGUES, Alan. Jabuticaba política. ISTO É, [s.l.], 10 maio 2013 (atual. 21 jan. 2016). Disponível em: <http://istoe.com.br/297651_JABUTICABA+POLITICA/>. Acesso em: 10 abr. 2021.)

[6] ELKINS, Zachary; GINSBURG, Tom; MELTON, James. Characteristics of National Constitutions: Codebook. Comparative Constitutions Project. Disponível em http://www.comparativeconstitutionsproject.org. Acesso 27 mar. 2021.

[7] Para a Constituição brasileira de 1988, por exemplo, a versão mais atual datava de 2005.

[8] No vocabulário do Comparative Constitutions Project, o nome desse marcador é “systyear”. Dessa forma, o “systyear” para qualquer versão da presente Constituição brasileira é o inteiro 1988.

[9] Por exemplo, para determinado marcador, a resposta mais comum dentre x receberá uma posição relativa “1º de x”.

[10] Essa elevação é neutralizada quando se valora o resultado de const_compare junto à média global de similitudes, visto que todas as constituições têm igualmente sua similitude média engrandecida pela comparação consigo mesma.

[11] Essa concentração pode sustentar a existência de “matérias absolutamente constitucionais” conforme sugeriu Jobim (2004).

[12] A Constituição de 1988 estaria identificada no histograma entre os valores 58 e 60, portanto.

*Por Pedro Jatene Ellery

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Jatene Ellery
Interfaces Revistas

Undergraduate Student of Law at the Rio de Janeiro Law School — Fundação Getúlio Vargas