O reconhecimento em “A Metamorfose”, de Franz Kafka

Por Maria Cecilia Pinheiro

Maria Cecilia Pinheiro
Interfaces Revistas
3 min readNov 25, 2021

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Humano é aquele que não teve a oportunidade de virar inseto. E em “A Metamorfose”, de Franz Kafka, inseto não é aquele que acorda de sonhos intranquilos. De todos os debates que são, há décadas, levantados a respeito do livro, o tema que grita é a humanidade. É humano quem age com benevolência ou é humano quem é feito de carne e osso e usa roupas e sapatos?

É humano quem age com benevolência. Mas a pessoa que é humana não necessariamente é vista como tal. Porque a humanidade não depende de ninguém senão dos outros. Porque a humanidade depende de que os outros reconheçam um como humano. E, porquê só é humano quem é reconhecido como tal, a humanidade é dada a quem é feito de carne e osso e usa roupas e sapatos — caros e bonitos. E aí se dá a metamorfose. Gregor Samsa é humano e tratado como se o fosse quando sai com suas pernas para viajar e volta com suas mãos cheias de dinheiro. Mas quando as pernas e mãos e dedos de humanos são substituídas por perninhas de inseto, Gregor deixa de ser Gregor e passa a ser inseto. Gregor que vira Gregor-inseto que vira inseto-Gregor que vira inseto. As etapas de sua metamorfose. Cada etapa, desumanização. Desumanização esta que se acentua a cada vez que o escondiam — a cada vez que o faziam se esconder — , a cada vez que se horrorizavam com o som que saía de sua garganta, a cada vez que o percebiam inseto. E a cada passo, a humanidade se despedaçava. Porque Gregor podia continuar agindo com benevolência, mas ele não parecia humano. Ele parecia um inseto.

E foi assim que tiraram dele a sua humanidade.

A compreensão de humanidade como qualidade daquele que age com benevolência importa como paradigma social. Valores são importantes. Ética, moral. São diretrizes, na maioria de suas vezes, confusas e polêmicas, que permitem o convívio em sociedade. Mas a importância da teoria não gera a prática. Porque, para que as pessoas ajam com benevolência, para que as pessoas sejam humanas no sentido teórico, elas não dependem apenas da compreensão de humanidade como qualidade daquele que age com benevolência. Para que as pessoas ajam de tal maneira benevolente que reconheçam como humanos aqueles que agem com benevolência, elas precisam de mais do que compreender que esse conceito existe. Para que se haja o reconhecimento, valores outros, perversos, precisam cair.

E nessa encruzilhada surge a segunda face do não reconhecimento.

— o não reconhecimento pelos outros não é um fim em si mesmo.

Para se entender humano, os outros precisam concordar. E é nesse momento que Gregor-inseto morre cada dia mais: quando ficam horrorizados com sua nova voz; quando veem como se movimenta; quando olham para seus novos membros. E então, Gregor, substancialmente humano, perde, para si, seu valor.

Mas não são só os humanos-insetos que tiram, dos outros, valor. Seus rastros pegajosos reproduzem os valores que impedem a consagração da humanidade como independente da aparência. E assim entram os braços mecânicos do judiciário a re-produzirem nos processos, nas partes, nas falas, nas vestes, no trato, nas palavras, nas complexas incompreensíveis estruturadas sintáticas inversões, a semente da desumanização que embota o olhar.

O direito, re-produzindo-se a cada olhar hercúleo, a cada omissão, a cada ação, degenera o ciclo do reconhecimento. E o problema do direito são muitos. Muitos porque o direito não sabe o que é sentar no banco e contar sobre o dia em que mataram o seu filho; muitos porque o direito não sabe o que é não entender as perguntas que te fazem; muitos porque o direito é homem. A justiça é mulher, mas o direito é homem.

Abrindo os braços para todos os destratos, o direito torna-se espinha dorsal do dilema do reconhecimento. Se a instituição que busca justiça trata como insetos os humanos, quem se sentirá reconhecido? O olhar, a pompa, o verbo, a citação. O direito abraça como se fossem seus filhos. E como as pessoas que gostam do direito querem se sentir abraçadas, elas abraçam os filhos do direito também. E assim os ovos dos insetos se abrigam sobre os ombros largos do direito.

E procriam.

Dessas larvas, nem as letras maiúsculas que elas se dão são capazes de torná-las, um dia, mais do que insetos.

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Maria Cecilia Pinheiro
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Gosto mesmo é de escrever. Nas horas vagas, estudo direito em uma fundação no Rio de Janeiro.