#PraTodosVerem e imagem mostra, em close, uma estátua da Dama da Justiça, de olhos vendados, segurando em sua mão direita a balança e na esquerda a espada. A foto foi cedida por Tingey Injury Law Firm.

Papel de enquadramentos de realidades para a aplicação do Direito

A vida é só uma narrativa?

João Sousa
Interfaces Revistas
11 min readDec 8, 2020

--

1. Introdução

O presente trabalho possui um único objetivo geral — descobrir o papel da narrativa no que tange a um quadro específico do Direito. Para tanto, propõe-se um diálogo entre, de um lado, relacionar o experimento realizado/analisado e, do outro, fazer reflexões quanto à temática exposta.

Para realizar o objetivo almejado, o texto se organiza em quatro partes. Na primeira, expõe-se a introdução e os pressupostos do trabalho. Na segunda, é apresentada a metodologia do trabalho. Na terceira parte, detalham-se os resultados do experimento em suas versões e quais suas particularidades com uma breve discussão dos dados obtidos. Na quarta, finalmente, são feitas algumas reflexões e conclusões.

2. Pressupostos

I. Pessoas não são tão racionais como os modelos econômicos propõem ou pressupõem[1].

II. Heurísticas e vieses são fontes de influência na tomada de decisão[2].

III. O Direito é afetado por essas decisões enviesadas[3].

3. Escolhas e Enquadramentos

“Tomar decisões é como falar — as pessoas fazem isso o tempo todo, tendo ou não consciência.”[4]. A frase dita uma realidade. A sociedade está exposta, o tempo todo, ao processo de tomada de decisão. No Direito, assim como a vida, não seria diferente: criação de leis, alterações legislativas, múltiplas mudanças de jurisprudências — uma nova composição de ministros e ministras no STF pode facilmente alterar um entendimento consolidado.

Os estudos de tomada de decisão enfocam, rotineiramente, tanto preposições descritivas (como decisões são tomadas) como normativas (como decisões devem ser tomadas)[5]. Este trabalho não poderia ser diferente. Porém, com um rompimento parcial com esse tipo específico de estudo. O presente trabalho possui um norte que vai além do processo de tomada de decisão, olhando para quais são as consequências e implicações geradas por esse processo para o Direito e, até mesmo, para o orçamento do Estado. Ou seja, a aplicação do Direito possui impactos orçamentários e essa aplicação do Direito no caso concreto possui diferentes caminhos que podem ser trilhados.

A forma como os enquadramentos da realidade[1]*,[6] são organizados pode levar a diferentes resultados para os tomadores de decisão — seres humanos. Essa forma se faz necessariamente sob a forma da fabulação mítica, ou, como se gosta de dizer hoje em dia, de “narrativas” que nos orientam e nos motivam. Duas frases podem ter logicamente os mesmos elementos fáticos, mas que “significam” coisas completamente distintas. Dizer que uma cirurgia tem 90% de chance de sucesso sem nenhuma complicação é logicamente igual a afirmar que uma cirurgia tem 10% de chance de ter complicações, tais como infecção hospitalar. O ser humano tem uma predileção e preferência por uma delas, a saber, a primeira.

Involuntariamente, e na maioria dos casos, não buscamos reenquadrar as narrativas que se apresentam a nós. Com isso, nossas preferências (para o processo de tomada de decisão) são delimitadas pelos enquadramentos, mais do que pela própria realidade. Esses quadros de realidade podem ser formados de diversas formas, mas alguns elementos são, invariavelmente, presentes: (i) heurísticas e (ii) vieses.

De maneira simplificada, heurísticas são processos mentais que reduzem as tarefas complexas de avaliar probabilidades e prever valores para operações de julgamento mais simples[7]. Substituir uma pergunta complexa, difícil, por uma mais simples, ainda que imperfeita, ou seja, responder a uma pergunta no lugar de outra. Enquanto que vieses são opiniões subjetivas e ou predispostas que influenciam o processo de decisão[8], ou, simplesmente uma resposta intuitiva que desvia sistematicamente da resposta objetivamente correta.

No contexto apresentado, o presente trabalho propõe uma investigação empírica sobre a influência de fatores intuitivos na tomada de decisão jurídica para um caso que foi decidido pelo TJRJ e analisar o quanto as narrativas podem influenciar no ajuste do valor de uma indenização de danos morais para um caso concreto.

4. Experimento e Metodologia

Para enfrentar o problema relatado, partiu-se da hipótese de que seria constatável o efeito das narrativas em relação ao valor da indenização de danos morais, em outras palavras, que a narrativa influencia a aplicação do Direito. Ou seja, encontrar correlações relevantes entre os valores de danos morais pedidos pelas partes e o grau de relação emocional trazido por meio das narrativas.

Para testar a hipótese acima, um caso julgado pelo TJRJ foi usado como referência e adaptado (leia-se alterada e preservada a identidade da pessoa no processo julgado). Foram elaboradas três narrativas: (i) normal — descrevendo apenas os fatos; (ii) apelo 1 — narrativa criada com os fatos da anterior somados a uma imagem; e (iii) apelo 2 — narrativa criada com uma nova linguagem somada à imagem apresentada na narrativa anterior. Uma gradativa carga de emotividade é o que diferencia as três narrativas. Estas foram relatadas em um Google Forms e distribuídas por meio das redes sociais Whatsapp, Facebook e Twitter.

O experimento realizado foi do tipo entressujeitos, i.e cada participante viu um único cenário e atribuiu um valor monetário a ele. O procedimento do experimento em si era simples, devendo os participantes responder os seguintes itens: (i) termo de compromisso; (ii) idade; (iii) gênero; (iv) valor da indenização (limite de R$ 300 (em milhares de reais))[2]* — “Valor”; e (v) relação emocional numa escala de 1 a 9 — “Apelo”.

No mais, é preciso destacar que o valor da indenização de danos morais do caso real (Anexo 2) foi fixado no valor de R$ 95.680,00. Em outras palavras, temos, então, nosso valor referência para analisar se os valores dados com base [ou não] em cada versão da narrativa foram altos, baixos ou próximos do real.

Por fim, as três narrativas foram analisadas como se fossem uma única fonte de resposta — chamada total — para as análises estatísticas e correlações gerais.

5. Resultados e Discussão

Foram, ao total, 147 respostas ao questionário — 49 para a versão normal, 48 para a versão apelo 1 e 50 para versão apelo 2. Houve um grande intervalo de idade dos participantes, tanto pessoas de 18 (n=23) anos responderam, como também uma pessoa de 80 anos (n=1). Quanto à questão de gênero (feminino, masculino e não binário), foram 84 do gênero feminino (57,14%) e 63 do masculino (42,86%). Para cada narrativa, tem-se:

1. Narrativa normal: (i) valor médio[3]* da indenização — R$ 69.632,65; (ii) valor médio da escala emotiva — 3.51. Enquanto que a moda das variáveis analisadas foi, respectivamente, R$ 0,00 e 1 na escala emotiva. A figura 1 representa a distribuição das variáveis Valor e Apelo para a narrativa normal e a figura 2, as primeiras análises de correlação entre valor e apelo, cujo valor de Pearson[4]* foi de 0,8 (apresentando correlação).[5]*

2. Narrativa apelo 1: (i) valor médio da indenização — R$113.750,00; (ii) valor médio da escala emotiva — 4,83. Enquanto que a moda das variáveis analisadas foi, respectivamente, R$ 100.000,00 e 1 na escala emotiva. A figura 3 representa a distribuição das variáveis Valor e Apelo para a narrativa apelo 1 e a figura 4, as primeiras análises de correlação entre valor e apelo, cujo valor de Pearson foi de 0,7 (apresentando correlação).

3. Narrativa apelo 2: (i) valor médio da indenização — R$172.100,00; (ii) valor médio da escala emotiva — 6,28. Enquanto que a moda das variáveis analisadas foi, respectivamente, R$ 300.000,00 e 9 na escala emotiva. A figura 5 representa a distribuição das variáveis Valor e Apelo para a narrativa apelo 1 e a figura 6, as primeiras análises de correlação entre valor e apelo, cujo valor de Pearson foi de 0,7 (apresentando correlação).

4. Narrativa total: foi observada correção no valor de Pearson = 0,8 (Figura 7) para o experimento entre as variáveis valor e escala emotiva e um p-valor significativo (p < 0,05) para a hipótese proposta pelo presente trabalho.

Por fim, temos a relação média-valor de cada narrativa em relação ao valor dado no caso real e o comparativo das narrativas quanto a escala emocional[6]*.

Em primeiro lugar para a discussão: a escolha por esse modelo foi proposital. Buscou-se enviesar os participantes para que a reação emocional para cada cenário se traduza em uma diferença monetária, uma diferença no valor da indenização para o mesmo caso. Caso o experimento fosse realizado intrassujeito, cada participante poderia perceber que não haveria lógica em dar valores diferentes para os mesmos fatos — que a comoção influencia. Esse modelo de estudo “permite que a escolha individual dependa do contexto em que as escolhas são feitas”[9].

As pessoas não sabiam do outro cenário, da outra narrativa, ou seja, o valor monetário dado foi fruto de apenas uma narrativa apresentada. A narrativa era a única fonte de dados para que a pessoa pudesse monetizar os dados morais e indicar um valor na escala emotiva.

O fato de cada narrativa ter um valor correspondentemente mais alto atrelado à escala emotiva pode evidenciar que o mundo em nossas cabeças não é uma réplica precisa da realidade. Isso também importa. Uma vez que não estivemos no momento em que o fato aconteceu é preciso fazer usos de recursos que permitam que a realidade seja criada, ou melhor, seja pintada (como um quadro). A imagem da coisa não é a coisa.

Retomando a ideia de heurística, havia, pelo menos, duas no trabalho: (i) a heurística do afeto — pessoas fizeram julgamentos e tomaram decisões consultando suas emoções (a escala emotiva evidencia isso) e (ii) a heurística da ancoragem — a partir da fixação do valor de R$ 300.000,00. O valor é mais que o dobro dado pelo TJRJ e era preciso situar as pessoas numa realidade orçamentária. Como seria factível possível traçar um orçamento se não podemos prever que acidentes acontecerão e que o Estado deverá pagar por alguns deles?

Os tomadores de decisão (juízes ou juízas), por outro lado, quando estão se debruçando sobre um caso concreto também estão a enfrentar enquadramentos da realidade, pois não estavam presentes quando os fatos que precisam julgar aconteceram. Eles, portanto, precisam recorrer a narrativas, imagens e todo tipo de material para que as decisões tomadas sejam as mais racionais possíveis. Porém, isso nem sempre acontece. A descrição fática mais vívida pode produzir um peso de decisão maior para o mesmo caso se feita por outro colega de profissão.

Porém, se o fato de nossas emoções se traduzirem a maiores valores de indenização, isso pode mostrar que estamos propensos a um senso de solidariedade para reparação de danos. Se o fato da pessoa do caso ser uma mãe solteira importar para um valor de indenização maior, isso pode indicar um tipo de sociedade que queremos (ou não). Uma conclusão que chegamos é: a narrativa precisa ser levada a sério.

6. Reflexões e Conclusões

A narrativa como um fator importante para o Direito, Judiciário e até mesmo para questões orçamentárias do Estado leva a uma pergunta [quase que] imediata: como fazer com que narrativas não levem a tomadores de decisão a escolhas erradas? Como neutralizar narrativas — bem ou mal-intencionadas — uma vez que estão levando a uma distorção do racional e do ideal?

Nenhuma solução fácil se encontra no horizonte de possibilidades, mas são questões importantes demais para serem ignoradas ou, pior, terem respostas simplórias e categóricas. É preciso que não seja feita uma abordagem simplista, afinal, isso beira ao intelectualmente indefensável. A simplificação material pode nos levar a mais erros e problemas.

O ponto de partida foi questionar a possibilidade de verificação de efeitos da narrativa no processo de tomada de decisão que seriam traduzidos em valores de indenização por dano moral. A hipótese de que se partiu baseada em experimentos já realizados, era afirmativa. Para testá-la, serviu-se, porém, de um experimento controlado.

Com isso, quais as conclusões alcançadas?

Em primeiro lugar, que narrativas importam. É preciso levar as narrativas a sério para que tentemos entender a justificação de um magistrado numa decisão judicial — da maneira pela qual as razões para a fixação dos valores são apresentadas na sentença para as partes. Em segundo lugar, em um ambiente não controlado, uma situação real, o Direito pode atuar como importante mecanismo inibidor ou neutralizador de vieses frutos de narrativas ou julgamentos intuitivos. Em último lugar, este trabalho é um convite para novas investigações, trabalhos e pesquisas a respeito das interações entre Direito e o modo como pintamos nossos quadros de realidade para tomar decisões reais.

[1] “Enquadramento de realidade” é um viés cognitivo que se apresenta diante de nós na realidade e escolhemos com base nesses enquadramentos..

[2]O valor limite foi fixado em R$ 300.000,00 por dois motivos: (i) pessoas fora do campo do Direito não tem a dimensão do quanto seria razoável ou justo um valor de uma indenização para danos morais e (ii) o valor limite era mais que o dobro dado pelo TJRJ. Buscou-se limitar, como se fosse uma reprodução da realidade.

[3] Caso haja interesse, os valores referentes à mediana e moda de cada narrativa estão no Anexo 3.

[4] Mede o grau da correlação linear entre duas variáveis quantitativas. É um índice adimensional com valores situados ente -1,0 e 1,0. Quanto mais próximo de 1,0 haverá uma correlação positiva entre as variáveis (se uma variável aumenta, a outra aumentará. Quando esse valor for próximo a 0, demonstra que não há correlação. Quando o valor for mais próximo de -1,0 haverá correlação negativa (se uma variável aumentar, a outra diminuirá).

[5] Mediana: elemento que se encontra no centro do rol, aquele que divide o conjunto em duas partes iguais — ex: A = {10, 12, 12, 15, 20, 25, 30}, mediana é 15. Moda: elemento mais frequente dentro de um conjunto de dados — ex: A = {10, 12, 12, 15, 20, 25, 30}, moda é 12.

[6] Para o gráfico do valor médio do apelo foi desconsiderada esta variável para o caso concreto, uma vez que não é possível quantificar tal valor.

Referências:

[1] VERMEULE, Adrian. Three strategies of interpretation. San Diego L. Rev., v. 42, p. 607–628, 2005.

[2] KAHNEMAN, Daniel; TVERSKY, Amos. Choices, values, and frames. In: Handbook of the fundamentals of financial decision making: Part I. p. 269–27, 2013.

[3] KOROBKIN, Russell B. The problems with heuristics for law. UCLA School of Law, Law & Econ Research Paper, n. 4–1, 2004.

[4] KAHNEMAN, Daniel; TVERSKY, Amos. Choices, values, and frames. In: Handbook of the fundamentals of financial decision making: Part I. p. 269–278, 2013.

[5] KAHNEMAN, Daniel; TVERSKY, Amos. Choices, values, and frames. In: Handbook of the fundamentals of financial decision making: Part I. p. 269–278, 2013.

[6] KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar. Objetiva, p. 454, 2012.

[7] TVERSKY, Amos; KAHNEMAN, Daniel. Judgment under uncertainty: Heuristics and biases. Science, v. 185, n. 4157, p. 1124–1131, 1974.

[8] BUSENITZ, Lowell W.; BARNEY, Jay B. Biases and heuristics in strategic decision making: Differences between entrepreneurs and managers in large organizations. In: Academy of Management Proceedings. Briarcliff Manor, NY 10510: Academy of Management, 1994. p. 85–89.

[9] LICHTENSTEIN, Sarah; SLOVIC, Paul (Ed.). The construction of preference. Cambridge University Press, 2006.

Figura 1: Esquerda — histograma da distribuição dos valores na narrativa normal. Direita — histograma da distribuição da escala emotiva na narrativa normal.
Figura 2: Esquerda — gráfico de dispersão na narrativa normal. Direita — reta do grau de correlação (método de Least Squares) na narrativa normal.
Figura 3: Esquerda — histograma da distribuição dos valores na narrativa apelo 1. Direita — histograma da distribuição da escala emotiva na narrativa apelo 1.
Figura 4: Esquerda — gráfico de dispersão na narrativa apelo 1. Direita — reta do grau de correlação (método de Least Squares) na narrativa apelo 1.
Figura 5: Esquerda — histograma da distribuição dos valores na narrativa apelo 2. Direita — histograma da distribuição da escala emotiva na narrativa apelo 2.
Figura 6: Esquerda — gráfico de dispersão na narrativa apelo 2. Direita — reta do grau de correlação (método de Least Squares) na narrativa apelo 2.
Figura 7: Esquerda — gráfico de dispersão na narrativa total. Direita — reta do grau de correlação (método de Least Squares) na narrativa total.
Figura 8: Esquerda — média dos valores dados em cada narrativa e o valor cada no caso real. Direita — média dos valores na escala emotiva para cada narrativa.

João Sousa é biomédico formado pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), com ênfase em neuroquímica da depressão, é graduando em Direito pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio), é graduando em Teologia pela Faculdade Teológica Sul Americana (FTSA). É membro do Laboratório de Inovação em Políticas Públicas (LAB) da FGV Direito Rio. Foi bolsista de iniciação científica PIBIC em Biomedicina da UNIRIO e no Programa de Bolsas de Formação em Pesquisa Oncológica — MS/INCA.

--

--