Racismo na cabeça

Uma análise da realidade racista brasileira através do livro “O sol na cabeça”, de Geovani Martins

Alice von Paraski
Interfaces Revistas
3 min readNov 26, 2021

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Lançado em 2018, o livro de contos “O sol na cabeça” relata a dura realidade da periferia brasileira, com foco nas favelas do Rio de Janeiro. Geovani Martins, em treze contos, faz um panorama da vida e dos desafios que são enfrentados diariamente por moradores das comunidades cariocas, e passa por temas que vão desde a atuação da Polícia Civil até a presença do tráfico de drogas. Se, por um lado, o sol pode aparecer como um denominador comum nos contos, outra característica fica na cabeça no decorrer da leitura: o racismo.

Logo de cara, o que mais me chamou atenção nos contos como um todo foi a ausência de uma caracterização dos personagens: em nenhum momento são mencionados seus atributos físicos ou descrição de aparência. Apesar disso, é possível afirmar com certeza que as histórias narradas ali são de pessoas negras. Afinal, no cenário carioca, um menino branco dificilmente seria confundido com um assaltante enquanto espera por um ônibus, como ocorre em “Espiral”, já que essa suspeita está relacionada a um estereótipo racial. É interessante perceber que nunca no livro há referência ao racismo como prevê o tipo penal, ou seja, como uma ofensa dirigida aos grupos negros e marginalizados. Justamente como acontece na realidade, no livro, o racismo assume sua forma mais enraizada na nossa sociedade. O racismo é estrutural — ele está presente na própria maneira em que se organiza a sociedade. São essas atitudes “mascaradas” — se é que podemos falar que estão mascaradas — que são retratadas nas narrativas.

E, claro, se temos uma sociedade racista, nossas instituições reproduzem todo esse preconceito. Muito fácil perceber isso no conto “Rolézim”, que retrata a dificuldade dos adolescentes negros e favelados em ir à praia. Sempre seguidos por policiais e despertando suspeitas nas pessoas à sua volta, os jovens acabam sendo violentamente abordados pelos policiais na volta para casa, sem motivo algum — ou melhor, sem motivo aparente. O motivo “escondido”, aquele motivo que ninguém quer admitir para si mesmo é o racismo. Os policiais estavam abordando todos que saíam da praia naquele momento? O motivo “a mais” que fez aqueles adolescentes serem abordados foi a cor de sua pele. Instituições como a Polícia estão impregnadas com o racismo que permeia a estrutura social, e é esse racismo que mantém a marginalização da população negra. No conto “Espiral”, Martins nos oferece um ótimo panorama do abismo que marca nossa sociedade.

É foda sair do beco, dividindo com canos e mais canos o espaço da escada, atravessar as valas abertas, encarar os olhares dos ratos, desviar a cabeça dos fios de energia elétrica, ver seus amigos de infância portando armas de guerra, pra depois de quinze minutos estar de frente pra um condomínio, com plantas ornamentais enfeitando o caminho das grades, e então assistir adolescentes fazendo aulas particulares de tênis.

O mesmo racismo que faz com que a polícia seja sinônimo de proteção para uns e medo para outros mantém a estrutura do jeito que está e o poder nas mãos de quem já tem poder e privilégio.

Não é à toa que Geovani Martins se consolida como um novo expoente do realismo brasileiro. Em alguns momentos da leitura me perguntei se as histórias ali contadas são, de alguma forma, histórias reais que aconteceram com pessoas de carne e osso perto do autor e cheguei à conclusão que sim. Podem não ter acontecido exatamente como ele narra, mas acontecem todos os dias. O racismo pode ser considerado personagem principal do livro e, ao mesmo tempo, um personagem que nunca aparece. O autor não trabalha seu conceito ou até mesmo explicita a questão racial, mas, a todo momento, narra situações que provam sua existência. Afinal, assim como o Sol, o racismo está sempre presente, mesmo que encoberto.

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