‘Canga’ para a comunicação pública

Portaria unificou canais público TV Brasil e estatal TV Nacional; medida é percebida por especialistas como inconstitucional

Guto Moraes
interjor2019
4 min readMay 23, 2019

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Vencedor das Eleições Gerais 2018, Jair Bolsonaro ameaçou extinguir a TV pública ainda na primeira entrevista (REPRODUÇÃO/RECORD)

29 de outubro de 2018. Em sua primeira entrevista, um dia após a vitória nas Eleições, o futuro presidente do Brasil Jair Bolsonaro (PSL) condenava as emissoras que fugissem à lógica comercial no País. “Não podemos gastar mais de R$ 1 bilhão por ano com uma empresa que tem traço de audiência. Nós preferimos confiar na mídia tradicional quando o Governo quiser fazer seus anúncios (ver gráfico abaixo)”, declarou.

A entrevista foi concedida em caráter exclusivo à Rede Record, principal aliada na recente corrida presidencial na qual havia concorrido. De pernas cruzadas, o peesselista se esquivou ao responder o questionamento do jornalista Eduardo Ribeiro sobre os limites da liberdade de expressão, mas, em contrapartida, emendou a sentença. “Nós não queremos a propaganda, a nossa TV oficial. É ideia nossa privatizar ou extinguir.”

A fala de Bolsonaro, antes mesmo de assumir, é sintomática e esbarra em uma discussão antiga no Brasil, como a regulação da legislação de comunicação pública do País. Desde a criação da Constituição Federal de 1988, a falta de regulação dos artigos do capítulo V — sobre a Comunicação Social — tem criado uma cadeia que fere o princípio da pluralidade de discursos nos sistemas de rádio e televisão.

De acordo com o Art. 223, a complementariedade dos sistemas público, privado e estatal é o único parâmetro para a emissão de concessões de uso do espectro para a radiodifusão. No entanto, no dia 9 de abril, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) divulgou a Portaria nº 216/2019, que anunciava a unificação das emissoras pública TV Brasil e estatal TV NBR. O texto foi assinado pelo diretor-presidente da EBC, Alexandre Graziani Jr.

(Foto: Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé/Reprodução)

Quase dois meses após a divulgação da Portaria, entidades e ativistas questionam a legitimidade da medida. “Esse texto fere a Constituição Federal, fere o artigo 223 e impacta direto na autonomia da TV pública, na independência do conteúdo editorial. Ou seja, perdeu-se o esforço de décadas no País para a construção de uma televisão pública, independente das ingerências do Governo Federal”, lamentou o presidente da TV Pernambuco, Gustavo Almeida.

Para a pesquisadora Acsa Macena, especialista em comunicação pública, a medida integra um desmonte estrutural da EBC. “Um dos princípios que deve nortear uma emissora pública é a independência editorial, o que é previsto pela Constituição Federal e por entidades internacionais como a Unesco”, aponta. Desde 2016, ela acompanha os processos envolvendo a emissora e fala sobre um “esvaziamento do caráter público”.

“No governo Michel Temer, houve uma medida provisória que esvaziou o caráter público da TV Brasil. Ela pôs fim ao conselho curador, que era o órgão que representava a sociedade civil na empresa. Além disso, também demitiu o diretor-presidente da empresa, que tinha mandato fixo de quatro anos — ou seja, agora ele pode ser demitido e admitido a qualquer hora pelo presidente da República.”

Ainda em abril, o Projeto de Decreto Legislativo (PDL 11/2019) passou a tramitar na Câmara Federal e pede a suspensão da Portaria nº 216/2019. O requerimento é de autoria dos deputados Márcio Jerry (PCdoB-MA), Luiza Erundina (Psol-SP) e Margarina Salomão (PT-MG). Os parlamentares foram procurados, mas, até o fechamento deste texto, a reportagem não obteve retorno.

A reportagem também entrou em contato com a EBC, que não respondeu.

E quanto gasta o governo com publicidade?

O gráfico demonstra os gastos do Governo Federal com publicidade por ano. Como é mostrado, o ano que o governo mais gastou com esse tipo de ação foi em 2014, totalizando R$ 360,7 milhões. O ano em que esse valor foi menor foi em 2015, totalizando 197,7 milhões. No primeiro trimestre de 2019, esse número totalizou em 19,67 milhões.

Somente no primeiro trimestre de 2019, foram gastos 19, 67 milhões com publicidade de utilidade pública. Os três maiores beneficiários estão representados no gráfico abaixo, que representa os valores em milhões. Nenhum desses beneficiários está relacionado a comunicação pública.

Dados: Portal da Transparência/Governo Federal

Texto e gráficos: Larissa Cavalcante

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Guto Moraes
interjor2019

Repórter de Cotidiano da Folha de Pernambuco. CEO da Revista Dona Custódia. Colaborou com o Catraca Livre e Revista O Grito!.