O computador pode escrever poesias?

Bruno Oliveira
Internet das Coisas
8 min readDec 10, 2019

<este texto foi inicialmente publicado na revista Fazia Poesia. estou postando aqui porque gosto de manter o registro dos meus textos — é um dos objetivos de eu ter criado este espaço>

Cada vez mais, novas tecnologias de inteligências artificiais são usadas para uma infinidade de aplicações. E a medida que este tipo de tecnologia se torna cada vez mais presente na vida das pessoas, reascende sempre a mesma discussão: o que será da humanidade? Os “robôs” conseguirão substituir os seres humanos? E se, cada vez mais, as pessoas tem a certeza de que os robôs assumirão seus trabalhos nas empresas, elas ainda não desconfiam que as máquinas podem substituir seus papéis emocionais. Os robôs cada vez mais tornam-se sensitivos, deixam de lado a sua função inicial de atender a necessidade humano (contrariando um pouco as leis de Asimov), e começam a ter suas próprias percepções — e isto dá valor a sua existência. Se tornam independentes na ação de intervir no mundo (e modificá-lo).

“Um robô consegue compor uma sinfonia? Pintar uma obra-prima?” | “Você consegue?”

1. Robôs também fazem poesias

Em meados de 2008, Dan Goshen tinha um de seus poemas aprovados pela revista literária de sua escola. Era um poema, como qualquer outro:

Ele era perfeitamente estranho,
Seu mundo era timidamente perdido,
Então ele sorveu seus sonhos.

Este seria um fato normal, se Dan Goshen não fosse, na verdade, um robô [1]. O robô passou a se chamar Ogden Nash e publicou vários outros poemas depois (alguns deles publicados AQUI).

Robôs fazendo atividades humanas já não é nenhuma novidade para nós, desde cortar a grama até jogar xadrez, os computadores já se mostraram capazes de realizar diversas tarefas. O que talvez nos cause tanto estranhamento é o robô realizar algo que, supostamente, parecia ser estritamente humana: escrever poesias. Mas, por que escrever poesia é algo tão humano? Para entender isso, primeiro, vamos procurar a definição do que são os “computadores” e a “poesia” (tarefa árdua).

Pelas definições, poesia e computadores são coisas totalmente incompatíveis. Primeiro porque a essência dos computadores consiste em obedecer, e a da poesia consiste em criatividade e inspiração, ou seja, o computador precisaria pensar para ser capaz de escrever poesias. Considerando isto, Alan Turing, o pai dos computadores, chegou a se questionar se os computadores seriam capazes de pensar, mas no final achou que essa reflexão era uma perda de tempo. Ao invés de ficar numa reflexão filosófica sobre o assunto, resolveu adotar uma perspectiva mais prática: um computador consegue imitar um ser humano? [2].

Se pensarmos a computação apenas como um jogo de imitação (como Turing propôs) isso nos dá uma nova perspectiva sobre a tecnologia. Quando pensamos em inteligência artificial, não devemos apenas pensar se conseguimos construir uma inteligência artificial específica, mas de qual versão do ser humano gostaríamos de refletir.

2. O processo criativo

Cada ser humano tem seu próprio processo criativo. Se pegarmos o processo criativo de uma das poetisas da Fazia Poesia, a Aimê Fonseca, veremos que o processo lembra muito um algoritmo de computador, com etapas bem definidas e funções estabelecidas dentro da poesia:

Processo criativo da Aimê [3]

O processo criativo humano não é só inspiração, existe muito raciocínio lógico e estrutura, que varia de cada autor. Clarice Lispector dizia que a criação de seus textos não era algo mágico, mas algo criado com muito pensamento e estrutura lógica — e só assim a criatividade e inspiração poderia emergir [4]:

Jamais caí em transe em minha vida. Não psicografo nem baixa em mim nenhum pai-de-santo. Sou como qualquer outro escritor. Em mim, como em alguns que não são apenas racionalistas, o processo de gestação se faz sem demasiada interferência do raciocínio lógico e quando de repente emerge à tona da consciência vem em forma do que se chama inspiração

Por outro lado, já existem protótipos de robôs, acoplados de sensores e algoritmos especiais, que podem tratar e manipular o abstrato — habilidade essencial para escrever poesias: (i) descobrir padrões; (ii) criar associações; e (iii) traduzir percepções em versos. O robô sensitivo [1], através de seus sensores, observa o mar, ouve o som das ondas do mar, os murmúrios dos ventos, das conversas infantis e do barulho incessante de aves marinhas. Na maioria das vezes, ele perambula sozinho para ouvir e sentir. Às vezes, ele escreve versos na areia, e observa as ondas lavá-los. Ou seja, consegue simular algo próximo ao processo criativo de um ser humano.

O robô sensitivo fica vagueando pelas areias da praia em busca de inspiração [5]

Tanto os humanos podem adotar meios pragmáticos de criação de poesias, como os computadores podem utilizar meios abstratos de fazê-lo. No fim, não existe um único modo de escrever poesia.

3. Teste de Turing e outras experiências

O teste de Turing [2] (proposto por Alan Turing — retratado no filme “O jogo da imitação”) é uma das técnicas mais usadas para descobrir a diferença entre robôs e seres humanos. Na prática, um interrogador tenta descobrir qual dos dois objetos de análise é um (sendo que o outro é obrigatoriamente algo produzido por um robô/algoritmo). Se acreditar que o robô é o mais humano dos dois, o sistema passa no Teste de Turing.

Na ficção, outros modelos de testes foram criados para verificar a inteligência das máquinas e/ou distingui-las dos seres humanos. Talvez o mais famoso deles seja o teste de Voight-Kampff (teste V-K), que foi abordado em Blade Runner (versão de 1982) — o teste consiste em um conjunto de pelo menos 30 perguntas para verificar se um sujeito é um replicante (as máquinas com aparência de seres humanos naquele universo). As perguntas são do tipo:

“Você está em um deserto andando sozinho e de repente olha para baixo e vê uma tartaruga. Você se abaixa e a vira de costas para cima. A barriga dela fica queimando ao sol e ela balança as pernas, tentando se virar, mas não consegue sem sua ajuda. Você vai ajudá-la?”

“Você esta assistindo à televisão e percebe uma abelha em seu braço, o que você faz?”

No final, nenhum dos dois testes é 100% eficiente na função de distinguir máquinas, mesmo na ficção (o teste de Turing supostamente falha em “Deus Ex-Machina” e o teste V-K não identifica que [spoiler] Deckard é um replicante) — mas, no fundo, a função dos testes não é este, afinal. De certa forma, os testes opinam sobre o que é a natureza humana, e cada um dos “entrevistadores” que executa os testes da a sua própria opinião sobre o que entende ser um humano.

Oscar Schwartz [6] resolveu fazer um experimento com Teste de Turing e poesias, no site botpoet.com. Para o internauta que se dispõe a participar da experiência, são submetidos duas poesias, uma de um poeta humano e outro gerado por um robô, e você precisa identificar qual deles foi feito por um ser humano. O resultado (abaixo) é interessante. O poema feito por humanos considerado mais humano é “The Fly” (A Mosca, de William Blake), enquanto que o poema feito por computadores que é mais humano foi o “#6” (gerado pelo algoritmo Janus Node).

É interessante notar que a maioria dos poemas escritos por humanos que foram votados como sendo de robôs destacados abaixo são da Gertrude Stein (Study Nature, Red Faces e A light in the moon). Em uma análise fria, podemos dizer que William Blake é mais humano que Gertrude Stein. O que não necessariamente é verdadeiro. O fato é que o teste de Turing apenas coleta opiniões sobre o que é a natureza humana — e o que podemos observar, é que a categoria de humano é instável. O conceito de humano muda com o tempo, diverge entre cada ser humano e depende muito das experiências vividas por cada um. Stein e Blake são de séculos diferentes, realidades e movimentos literários diferentes. Blake viveu mais intensamente a revolução francesa que dita boa parte do modo como vivemos até hoje, Stein viveu parte do movimento dadaísta, seu poema é mais experimental, e por isso nos parece menos comum. Ao lermos Blake, temos mais referências e memórias do que ao lermos Stein, e por isso achamos ele “mais humano” simplesmente por nos parecer mais familiar.

4. Conclusão

Poucas coisas nos remetem a algo intrinsecamente humano como a poesia. O conjunto de emoções, sentimentos e valores abstratos que envolvem a poesia sempre nos mostra boa parte do que é ser um humano — sua diversidade e limitações. Por isso, é tão difícil entender como um computador pode realizar tal tarefa.

Mas a conclusão é de que sim, o computador pode escrever poesias. E mais, algumas delas podem ser indistinguíveis das escritas por um ser humano comum. Ponto final.

Na verdade, essa pergunta é tão complexa que fica até difícil se limitar a um simples sim. Há toda uma reflexão moral-filosófica sobre o que realmente é o ser humano — e mais do que apenas tecnologia, o computador é apenas um reflexo de uma noção de ser humano que lhe mostramos. Se apresentar William Blake para um computador, em algum tempo ele começará a produzir poesias tão parecidas como o autor. O processo criativo de qualquer poeta pode ser replicado, pois no fundo, todos possuem estruturas e lógicas definidas de como escrever, e os computadores já são capazes, a seu modo, de captar e transformar o abstrato em palavras.

Ainda que aparentemente seja assustador saber que computadores podem estar “substituindo” os seres humanos até nas atividades mais intelectuais e mais “puras” e “nobres” da nossa raça, ao mesmo tempo é interessante saber como essa experiência consegue nos mostrar o quanto a humanidade é diversa e quão pouco entendemos sobre o que é ser um humano.

De qualquer forma, vida longa a poesia (humana ou não)!

Alan Turing refletindo sobre o monstro que criou: o computador!

Referências e Recomendações de Leitura

[1] Elizabeth Preston. “Como computadores escrevem poesia”. 2016.

[2] Alan Turing. “Computing Machinery and Intelligence”. 1950.

[3] Fazia Poesia. “Quem Fez Poesia? #22 — Conheça Aimê Fonseca”. 2019.

[4] Priscila Berti Domingos. “O tecer das palavras: o processo de criação literária de Clarice Lispector em Cartas perto do coração”. 2006.

[5] Futuro Exponencial. “Design projeto robô sensitivo que projeta poemas na praia”. 2019.

[6] Oscar Schwartz. “Can a computer write poetry?”. 2015.

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Bruno Oliveira
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Auditor, escritor, leitor e flanador. Mestrando em TI, tropecei na bolsa de valores. Acredito nas estrelas, não nos astros. Resenho pessoas e o tempo presente.