O novo na fôrma do velho

O desequilíbrio da internet na hora de valorizar os conteúdos que circula.

Bruno Fiorelli
6 min readMar 7, 2014

Não preciso explicar o que é a internet — ela é grande.

E organizá-la de uma maneira confortável não é tarefa simples; é algo que se aprimora a medida em que a própria internet vai crescendo e se complicando.

Sabemos que o foco, hoje, passou a ser disponibilizar o conteúdo certo para a pessoa certa. E a Web 2.0, principalmente através das redes sociais, serviu muito bem a esse propósito.

Os botões de curtir, por exemplo, são uma forma muito boa de filtrar a avalanche de conteúdo que se torna disponível todos os dias. Eles permitem que as redes, através do seu histórico de curtidas, façam uma seleção relativamente personalizada do que deve chegar primeiro até você.

Só que esse tipo de recurso é muito superficial, ao ponto de prejudicar a experiência na web tanto de quem cria conteúdo quanto de quem consome.

O seu curtir não é capaz de diferenciar algo que você realmente achou ser de valor de uma foto de um gato com chapéu.

O problema é sério, ainda mais se prestarmos atenção no peso econômico que a internet tem nos dias de hoje.

Nosso curtir é o melhor indicador que os anunciantes têm para decidir onde colocam o seu dinheiro — e o seu anúncio. E na forma como ele é moldado, o que está sendo valorizado não é a qualidade do conteúdo em si, mas sim a quantidade de pessoas olhando para ele.

Nesses termos, obviamente, o gato com chapéu fica mais rentável do que uma arte digital, por exemplo.

Não me entenda mal, gatos com chapéus são legais.
Mas qual a dificuldade de publicar isso — comparado, por exemplo, com uma música autoral, um vídeo de standup, ou um artigo jornalístico bem embasado?

O resultado é que muita gente que é preocupada em fazer algo em que realmente acredita, e que até consegue um público considerável, acaba ganhando migalhas na internet.

Enquanto aquele vídeo horroroso, que você tinha que compartilhar e comentar o quanto era ruim, acaba ganhando dezenas de milhões de acessos, e sendo incentivado financeiramente por anunciantes.

Para dar um exemplo do que são essas migalhas, a galera do Patreon soltou recentemente um infográfico, mostrando como funciona a remuneração por acesso no Youtube (em dólares, porque o exemplo foca nos EUA).

Quando alguém posta um cover de uma música popular:

Infográfico criado por Veronika Hecko Wu
  • O anunciante costuma pagar por volta de $2 CPM (custo por mil reproduções) para rodar anúncios logo antes do vídeo;
  • Se o vídeo alcança um milhão de acessos, isso soa como $2.000 dólares, certo?
  • Mas, geralmente, apenas 20% das visualizações são monetizadas;
  • Ou seja, isso resulta em uma média de $400 dólares remunerados.

Vou repetir: um milhão de acessos = $400 dólares.

E esses $400 são repartidos assim:

Infográfico criado por Veronika Hecko Wu

Por mais que o criador tenha sido criativo e esforçado; por mais que tenha alterado a música, feito sua versão, com seus próprios instrumentos — por se tratar de um cover, ele não ganha nada.

Dos $400 dólares gerados, $180 ficam com o Youtube e $220 vão para quem quer que tenha os direitos autorais daquela música.
Simples assim.

https://www.youtube.com/watch?v=j6B9Mgy3BM8

Para quem quiser ver um exemplo de um cover trabalhoso e elaborado — que não ganhou nenhum tostão.

Felizmente, o Youtube reconheceu o problema e está mudando seu sistema de remuneração, que ficará mais ou menos da seguinte forma:

Infográfico criado por Veronika Hecko Wu

No caso do cover, o criador que conseguir um milhão de visualizações passará a receber um pagamento de $100.
Em outros casos, quando o conteúdo veiculado for completamente autoral, o criador ganhará $220.

Tudo bem, existem youtubbers que ganham um pouco mais, outros que ganham um pouco menos que isso. Mas o ponto é que é praticamente impossível viver exclusivamente desse tipo de atividade.

Até tem gente que consegue, sim, enriquecer dessa forma. Mas é preciso conseguir dezenas de milhões de visualizações em todos os seus conteúdos, o que significa também que, para conseguir esses números, não se pode arriscar muito.

A criação acaba sendo formatada mais em função de atrair o olhar rápido do maior número possível de pessoas, e não em função do conteúdo em si.

Percebeu a nossa burrice?

Nós conseguimos, com a internet, um veículo de comunicação e interação totalmente livre — para acabarmos condicionados aos mesmos grilhões dos mecanismos de financiamento da TV, do jornal, do rádio…

E não, não precisa ser assim.
Nós só temos que pensar em maneiras de contribuir ativamente ao tipo de conteúdo que nos interessa, e não simplesmente nos preocuparmos em consumir, deixando que os anunciantes remunerem os conteúdos pela gente.

Eles não se importam com o conteúdo.
Quem se importa é você e o criador.

Olhemos para a oportunidade, como este é um momento muito interessante:

Antes da internet, consumíamos passivamente tudo o que cozinhavam para a gente. Era preciso ter condições financeiras de acesso a esse conteúdo — seja possuindo uma TV, ou um rádio, frequentando o cinema, ou pagando por assinaturas de jornais e revistas.
E tudo era produzido e/ou pré-aprovado por grandes indústrias, e transmitido por centrais, em forma de broadcasting.

Com a consolidação da internet, explodiram tanto o compartilhamento de conteúdos próprios, quanto a pirataria de conteúdos até então protegidos. Essa foi uma etapa importante de libertação porque, entre outras coisas, permitiu o acesso a todo tipo de conteúdo por quem não tinha como pagar por nenhum.

Hoje, chegamos num ponto em que os broadcastings, os conteúdos industrializados, já não nos interessam tanto. Melhor ainda, encontramos meios de criar os nossos próprios conteúdos com muita qualidade; e com a internet, conseguimos distribuir esses conteúdos abertamente.

Deu tão certo que, hoje, os grandes é que voltam seus olhos para o conteúdo que surge na internet. Injetam dinheiro e até migram esses conteúdos para a televisão e os jornais, sempre que podem.

Só que não se trata de nada além de um paliativo. Ao fazerem essas migrações eles estão apenas forçando o novo para dentro da estrutura do velho.

E não cabe — não satisfatoriamente, pelo menos.

Uma solução mais interessante já está tomando forma. Com a ajuda da internet, não dependemos mais de grandes sistemas financeiros: estamos distribuindo e reorganizando nosso próprio dinheiro.

Hoje já fazemos “vaquinhas” gigantescas, financiando nossos próprios projetos sem a ajuda de governos, bancos ou empresas.

Só não estamos acostumados, ainda, a contribuir com o que nos é oferecido de graça.

Ainda não contribuímos suficientemente com coisas menores e cotidianas, com aquilo que sabemos que é bom, e que mereceria o nosso apoio financeiro. Simplesmente porque a internet sempre nos ofereceu tudo de bom grado.

Mas já imaginou a diferença que isso faria?

Por que não damos mais esse passo, e libertamos os nossos criadores de conteúdo das mesmas velhas estruturas das quais nós estamos nos libertando?

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