Nós, As Crianças da Web

por Piotr Czerski

Jacqueline Lafloufa
Interwebz

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Original: Piotr Czerski
Traduzido por Jacqueline Lafloufa, com base na tradução em inglês feita por Marta Szreder)
Via The Atlantic

Provavelmente não existe outra palavra mais desgastada pela mídia do que “geração”. Uma vez eu tentei contar as “gerações” que foram apontadas nos últimos 10 anos, desde o conhecido artigo da chamada “Geração Nada”; eu acho que haviam cerca de 12 delas. Todas tinham uma coisa em comum: elas existiam apenas no papel. A realidade nunca nos ofereceu uma única experiência comum que fosse tangível, significante, inesquecível, que nos separasse para sempre das gerações anteriores. Estivemos procurando por ela, mas a mudança mais revolucionária veio sem alarde, junto com a TV a cabo, os telefones celulares e, acima de tudo, o acesso à Internet. Apenas hoje podemos entender de forma mais ampla as mudanças que aconteceram nos últimos 15 anos.

Nós, as crianças da web; nós, que crescemos com a Internet e na Internet, somos uma geração que atendeu esse critério de um jeito meio subversivo. Nós não experimentamos um impulso vindo da realidade, mas uma metamorfose da própria realidade. O que nos une não é um contexto cultural comum e limitado, mas a crença de que esse contexto é definido individualmente e é um efeito da livre escolha.

Ao escrever esse texto, eu tenho consciência de que estou abusando do pronome “nós”, já que o nosso “nós” é flutuante, descontínuo, indefinido, e de acordo com uma antiga categorização, temporário. Quando eu digo “nós”, isso significa “muitos de nós”, ou “alguns de nós”. Quando eu digo “nós somos”, significa “nós normalmente somos”. Eu digo “nós” apenas para que seja possível falar sobre nós.

  1. Nós crescemos com a Internet e na Internet. É isso que nos faz diferentes; essa é a crucial diferença, ainda que ela seja surpreendente do seu ponto de vista: nós não ‘surfamos’ na rede e a internet não é para nós um ‘lugar’ ou um ‘espaço virtual’. A internet para nós não é algo externo à realidade, mas uma parte dela: uma camada invisível, mas constantemente presente, que se mistura com o ambiente físico. Nós não usamos a Internet, nós vivemos na Internet e junto com ela. Se pudéssemos contar para você, “O Analógico”, uma história sobre o nosso crescimento psicológico e moral, poderíamos dizer que existe um aspecto natural da Internet em cada experiência que nos moldou. Fizemos amigos e inimigos online, planejamos festas e reuniões de estudo online, nos apaixonamos e terminamos relacionamentos online. A Web para nós não é uma tecnologia que tivemos que aprender e que aprendemos a lidar. A Web é um processo, acontecendo continuamente e continuamente transformando diante dos nossos olhos; conosco ou apesar de nós. As tecnologias aparecem e desaparecem em acessórios periféricos, em sites que são construídos, e elas florescem e se desmancham, mas a Web continua, porque nós somos a Web; nós, comunicando-nos uns com os outros de uma forma que se torna natural para nós, mais intensa e mais eficiente do que nunca na história da humanidade. Criados na Web, nós pensamos diferente. A habilidade de encontrar informação é, para nós, algo tão básico como a habilidade de encontrar uma estação de trem ou um posto dos correios em uma cidade desconhecida pode ser para você. Quando nós queremos saber alguma coisa — os primeiros sintomas de catapora, as razões por trás do naufrágio do ‘Estônia’, ou se a nossa conta de água está ou não alta demais — nós tomamos algumas decisões com a certeza de um motorista em um carro equipado com um navegador de satélite. Nós sabemos que vamos encontrar a informação que precisamos em uma grande variedade de lugares, sabemos como chegar a esses lugares, e sabemos como definir se eles são fontes confiáveis. Nós aprendemos a aceitar que ao invés de uma resposta, vamos achar diversas delas, e dentre elas podemos escolher a versão mais provável, desfazendo-nos daquelas que não parecem críveis. Nós selecionamos, filtramos, lembramos e estamos prontos para trocar a informação que já tínhamos por uma outra nova e melhor, quando ela aparecer. Para nós, a Web é como uma espécie de memória externa. Não temos que nos lembrar de detalhes desnecessários, como datas, somatórias, fórmulas, cláusulas, nomes de ruas, definições detalhadas. É suficiente pra gente ter uma noção mais abstrata, a essência que é necessária para processar a informação e relacioná-la com outras. Se precisarmos dos detalhes, nós podemos ir atrás deles em questão de segundos. Da mesma forma, nós não precisamos ser especialistas em tudo, porque sabemos onde encontrar pessoas que são especialistas no que nós mesmos não somos, e em quem podemos confiar. As pessoas vão compartilhar seus conhecimentos conosco sem visar lucro, porque mutuamente acreditamos que o conhecimento existe em movimento, e que ele quer ser livre, que todos nós podemos nos beneficiar da troca de informações. Todos os dias: estudando, trabalhando, resolvendo problemas do dia a dia, indo atrás do que nos interessa. Sabemos como competir e gostamos de fazê-lo, mas nossa competição, nossa vontade de ser diferente, ela é baseada em conhecimento, na habilidade de interpretar e processar informações, e não em monopolizá-la.
  2. Participar da vida cultural não é algo extraordinário para nós: a cultura global é a pedra fundamental da nossa identidade, mais importante para nos definir do que tradições, narrativas históricas, condição social, ascendência ou até mesmo o idioma que usamos. Do oceano de acontecimentos culturais, escolhemos aqueles que nos agradam mais; interagimos com eles, analisamos e postamos nossas resenhas online, em sites criados com esse propósito, onde também conseguimos sugestões de outros álbuns, filmes e jogos que podemos gostar. Alguns filmes, séries ou vídeos nós assistimos juntos com colegas ou amigos do mundo todo; nosso gosto por alguns deles só é compreendido por um pequeno grupo de pessoas que talvez nós nunca tenhamos a chance de conhecer ao vivo. Por isso que sentimos que a cultura está se tornando cada vez mais global e individual. É por isso que precisamos de um acesso livre a ela. Isso não significa que estejamos querendo que produtos culturais estejam disponíveis de graça, ainda que quando nós criamos algo, tenhamos a tendência de ‘devolver’ essa criação para o meio. Nós entendemos que, apesar da crescente acessibilidade das tecnologias, que fazem com que a alta qualidade de filmes ou de arquivos de áudio, até então reservadas apenas para profissionais, possam ser disponibilizadas para todo mundo, a criatividade requer esforço e investimento. Estamos dispostos a pagar, mas a comissão enorme que é requerida pelos distribuidores nos parece um exagero. Por que deveríamos pagar pela distribuição de uma informação que pode ser facilmente copiada com perfeição, sem nenhuma perda de qualidade do original? Se estivermos obtendo apenas a informação, queremos um preço proporcional a isso. Estamos dispostos a pagar mais, mas daí a gente também espera receber algo mais em troca: uma embalagem interessante, um gadget, uma melhor qualidade, a opção de assistir quando quisermos, sem precisar esperar o download de um arquivo. Estamos dispostos a demonstrar nosso apreço e queremos recompensar esses artistas (desde que o dinheiro deixou de ser papel moeda e começou a ser uma linha de números na minha tela, os pagamentos se tornaram um ato quase simbólico, com o pressuposto de beneficiar ambos os lados), mas as metas de vendas das grandes corporações não nos interessam nem um pouco. Não é nossa culpa se os negócios delas deixaram de fazer sentido no formato tradicional, e ao invés de aceitar o desafio da mudança e tentar nos oferecer algo melhor do que o que já conseguimos de graça, elas resolveram defender seu obsoleto funcionamento. Ah, mais uma coisa: nós não queremos pagar pelas nossas memórias. Os filmes que fazem com que a gente se recorde da nossa infância, a música que nos acompanhou 10 anos atrás: na rede de memórias externas, elas são apenas memórias. Relembrá-las, compartilhá-las e desenvolvê-las é algo tão natural para nós quanto a memória de “Casablanca” é para você. Nós encontramos online os filmes que assistimos quando éramos crianças e mostramos-os aos nossos filhos, assim como você fez com a história da Chapeuzinho Vermelho ou da Cachinhos Dourados. Você poderia imaginar que alguém poderia acusá-lo de infringir a lei por fazer isso? Nós também não.
  3. Nós nos acostumamos com as nossas contas serem pagas automaticamente, contanto que tenhamos saldo para isso; nós sabemos que abrir uma conta no banco ou trocar a operadora de telefonia é uma questão apenas de preencher um formulário online e assinar um contratinho; que até uma viagem para a Europa, com uma rápida visita a uma cidade diferente no trajeto, pode ser organizada em duas horas. Com isso, ao sermos usuários do estado, nós estamos cada vez mais incomodados com a interface arcaica que ele tem. Não entendemos porque as taxas precisam de tantos formulários para serem pagas, alguns deles com centenas de perguntas. Não entendemos por que temos que notificar a mudança de endereço físico às autoridades, como se as instituições não pudessem comunicar-se entre si sem a nossa intervenção (isso sem contar que a necessidade de ter um endereço físico é absurda o suficiente). Nós não temos nem um pouco daquela humilde aceitação dos nossos pais, que foram convencidos que os incômodos administrativos eram importantíssimos, e que consideravam a interação com o estado algo para ser comemorado. Nós não sentimos esse respeito, que tem origens na distância entre o cidadão comum e as majestosas alturas dos locais onde residia a classe social dominante, quase invisíveis sob as nuvens. Nossa visão da estrutura social é diferente da de vocês: a sociedade é uma rede, não uma hierarquia. Nós estamos acostumados a ter a oportunidade de iniciar um diálogo com qualquer um, seja um professor ou uma estrela pop, e não precisamos de nenhuma qualificação especial relacionada ao nosso status social. O sucesso dessa interação depende apenas se o conteúdo da nossa mensagem será entendido como importante ou merecedor de uma resposta. E se, graças à nossa cooperação, disputa contínua e defesa de argumentos, nós sentimos que nossas opiniões em diversos assuntos são apenas melhores, por que nós não iríamos esperar um diálogo sério com as instituições governamentais? Nós não sentimos esse respeito religioso com as ‘instituições da democracia’ do jeito que elas se apresentam hoje, não acreditamos no seu papel evidente ou inquestionável, como aqueles que veem as ‘instituições da democracia’ como um monumento para eles e feito por eles. Não precisamos de monumentos. Nós precisamos de um sistema que atenda as nossas expectativas, um sistema que seja transparente e competente. E nós aprendemos que a mudança é possível: que todo sistema desconfortável pode ser substituído por um novo, um que seja mais eficiente, melhor adaptado às nossas necessidades, que nos ofereça mais oportunidades. O que nós valorizamos mais é a nossa liberdade: liberdade de expressão, liberdade de acesso à informação e à cultura. Nós acreditamos que é graças à liberdade que a internet é o que é, e que é nosso dever proteger essa liberdade. Nós devemos isso às próximas gerações, tanto quanto nós devemos a elas a proteção ao meio ambiente. Talvez ainda não tenhamos dado um nome a isso, talvez ainda não estejamos totalmente conscientes disso, mas eu acho que o que queremos é uma democracia real, genuína. Uma democracia que, talvez, é bem maior do que a sonhada pelo seu jornalismo.

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Jacqueline Lafloufa
Interwebz

Jornalista, consultora e curiosa. Editora da @interwebzbr. De olho em inovação, tecnologia e comunicação. Atende por @jacquelinee nas redes sociais