Paladino da privacidade

Jacqueline Lafloufa
Interwebz
Published in
5 min readNov 25, 2019

Memórias de Edward Snowden reativam o delator da NSA como um defensor dos direitos individuais à privacidade e intimidade

Por Jacqueline Lafloufa

Edward Snowden na capa do livro com suas memórias. Crédito: Divulgação / Editora Planeta


Snowden, Edward
Eterna Vigilância
Editora Planeta• 288 pp • R$ 44,90

Numa época em que se discute tanto o que as empresas e governos podem fazer com os nossos dados, com regulações internacionais como a britânica GDPR e a proposta brasileira da LGPD, o título das memórias de Edward Snowden também salta aos olhos: eterna vigilância. Se o roteiro todo pudesse ser resumido em apenas uma frase, seria “a história do especialista em TI que remou contra a maré e os impactos globais de suas ações”, ou algo semelhante. No entanto, mais do que um livro de detalhamento das suas denúncias como delator da vigilância exercida pela NSA, Eterna Vigilância traz também um olhar mais emocional e empático sobre a figura de Snowden, que se viu em um dilema moral no início da sua terceira década de vida.

Mesmo que parta, no prefácio, do seu momento atual como exilado político por ser considerado um traidor nos EUA, o livro leva o leitor até os anos mais tenros da infância de Snowden, quando quando sua curiosidade e sua inteligência o levavam a contornar a hora de dormir (ao alterar os relógios da casa) ou a propor correções em sites governamentais quando ainda mal tinha entrado na adolescência. O ar nostálgico das lembranças pode causar uma conexão interessante com quem também teve suas primeiras experiências com a computação no início dos anos 90, quando os computadores pessoais ainda eram familiares e a maioria ainda se conectava à web através de um barulhento modem que discava para a internet.

É essa narrativa de “um homem comum dos anos 90 e 2000” que parece ser a trama até mais ou menos a metade do livro. Snowden recupera pela memória situações juvenis de descoberta do mundo da computação e desafios de um entrante no mundo corporativo que vão soar familiares aos leitores da sua geração. Essa identificação passa pelas frustrações da não-integração de alguém visto como “nerd”, da decepção de não ter um físico robusto o suficiente para se manter no exército ou a tendência à complacência aos métodos questionáveis de trabalho nos primeiros anos da vida corporativa em instituições governamentais. Até que, em determinado momento, seu compasso moral começa a soar mais forte e mais alto do que a tendência a ignorar as evidências nefastas encontradas e simplesmente continuar a trabalhar. O conhecimento, a inteligência e a perspicácia de Snowden têm um preço: ele já não consegue mais “des-ver” o que considerava errado dentro dos sistemas de inteligência do governo norte-americano, que implantou uma eterna vigilância sobre pessoas do mundo todo.

Um 007 menos romântico

Ainda que a vida de Snowden tivesse ares da carreira de um espião — como ter acesso a informações confidenciais e não poder comentar sobre elas nem mesmo com sua família , ir a jantares exclusivos ou conhecer figuras de grande interesse político — ele não parece ser partidário de um romantismo da sua vida a la James Bond. Didaticamente, Snowden vai aos poucos explicando para o leitor cada uma das peculiaridades do sistema onde esteve envolvido, destrinchando como funcionam as escalas de confidencialidade, detalhando qual “brecha” do sistema permitiu que ele tivesse acessos tão privilegiados, dissecando o funcionamento macro das estruturas a que estava sujeito e didaticamente explicando conceitos complexos da tecnologia da informação. Um trecho que merece destaque foi a metáfora que Snowden encontra para explicar o complicado conceito de criptografia de dados, utilizada por ele para garantir a segurança das informações que retirara da NSA e que mais tarde iria abrir à público, em parceria com Glenn Greenwald. Ao comparar uma chave criptográfica com um “encanto” que aciona uma “varinha mágica”, ele cria uma visualização muito imagética e didática de como o processo funciona, garantindo que suas memórias não seriam compreendidas apenas por quem tem bagagem técnica para acompanhá-lo.

“Imagine um algoritmo de criptografia moderno como uma varinha mágica que, ao passar sobre um documento, altera cada letra para uma linguagem que só você e as pessoas da sua confiança podem ler, e a chave da criptografia como palavras mágicas únicas que completam o feitiço e põem a varinha para trabalhar. Não importa quantas pessoas saibam que você usou a varinha, contanto que possa esconder suas palavras mágicas pessoais daqueles em que não confia.” — trecho de Eterna Vigilância, de Edward Snowden (2019)

Memórias informativas

Ainda que tenha essa natureza autobiográfica, as memórias de Snowden ganham um ar dramático e emocional, com menos objetividade sobre os fatos, mas com uma grande preocupação em se manter informativo e detalhado sobre a delação da NSA. Mesmo com um viés claro de defesa das ações de Snowden, Eterna Vigilância se coloca muitas vezes como uma proposta de “grata despedida”. Enquanto fecha o capítulo de suas delações e todas as implicações e impactos que ela teve sobre a sua vida e a de seus familiares, Snowden se mostra sempre agradecido aos seus pais, à sua (agora) esposa e aos seus aliados, que mesmo questionando sua decisão de se colocar “na berlinda”, o apoiaram e o defenderam como puderam. É como a carta de alguém que encerra um ciclo, fazendo um balanço do que ocorreu e recontando os trechos mais importantes daquela história.

Claro que há, também, um posicionamento do livro como uma interessante peça de marketing para reformar o pacato Snowden, que se esconde de câmeras e não se porta tão bem em público, em um prolífico palestrante sobre os impactos da vigilância na vida contemporânea e um defensor dos direitos à privacidade dos dados e intimidade das pessoas. Não deve ser coincidência que a obra estreia bem em tempos quando os grandes titãs da tecnologia se veem cada vez mais pressionados pela sociedade por mais transparência e cuidado com os dados e informações que coletam. Já tendo defendido o tema antes, à grandes custos pessoais, Snowden continua no front pela defesa do direito das pessoas de não serem vigiadas.

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Jacqueline Lafloufa
Interwebz

Jornalista, consultora e curiosa. Editora da @interwebzbr. De olho em inovação, tecnologia e comunicação. Atende por @jacquelinee nas redes sociais