Como é ter e conviver com alguém que tem transtorno bipolar

Daniela Amadeu
Introverso
Published in
9 min readApr 4, 2018
Shelf cloud anexada a uma cumulimbus trazendo a tempestade

O texto todo está elaborado na ordem abaixo:

  1. Muito além dos altos e baixos do humor
  2. Como é ter TAB
  3. É ter mania
  4. É ter depressão
  5. É ter psicose
  6. É ter irritação
  7. É não saber quem você é
  8. É sentir-se constantemente envergonhado e culpado
  9. Conviver
  10. Considerações
Uma foto minha, num filtro meio post rock / doom metal

1)

Neste texto, eu assumo que você saiba o que é transtorno bipolar, então vou me concentrar em explicar o que você não está familiarizado porque a maioria das pessoas, quando escrevem, estão mais focadas em falar exatamente aquilo que todo mundo já sabe sobre TAB.

Tab não é só mania e depressão. Também pode envolver a perda do contato com a realidade, os chamados delírios e psicoses. Eu vou colocar tanto o delírio quanto a psicose no pacote “psicose”.

2)

Para mim, o mais conflituoso da bipolaridade é a falta de consistência que ela me gera. Eu já falei sobre isso em outros posts meus. É incomodo. Qualquer projeto que eu me envolva me dá a sensação de que irei desistir ou abandonar daqui um ou dois meses porque eu não vou conseguir me manter estável. Uma crise de mania ou de depressão me consumirá no meio do caminho e me impedirá de prosseguir.

Eu não consigo confiar em mim, como consequência. Não sei se vocês já tiveram essa sensação, de não conseguirem confiar em vocês mesmos. É a mesma sensação de quando você não confia em outra pessoa. Sabe quando você delega uma atividade para alguém com aquela incerteza da capacidade da pessoa? Então, é o mesmo que eu sinto. Eu não duvido da minha capacidade intelectual, cognitiva, física; eu duvido da minha capacidade emocional e do meu humor. Não confiar em si próprio é o maior assassinato de autoestima possível. Eu só consigo me sentir enfiando o rabinho entre as pernas, me afastando e pensando que eu não vou conseguir.

3)

Na mania eu me torno uma pessoa irreconhecível. Uma completa hedonista. De festas, drogas e rodeada de gente que quase sempre eu nunca vi na vida. Eu vejo as cores mais vibrantes e as pessoas parecem estar emanando uma energia altamente positiva e contagiante. Isso também é um delírio, mas é um delírio típico da mania. Quando eu falo sobre ver as cores mais vibrantes, não é no sentido figurado, eu REALMENTE vejo as cores mais vibrantes.

Meus pensamentos se tornam muito acelerados e a cada segundo eu estou pensando num assunto completamente diferente. Na maioria das vezes os assunto são incompletos. É como ler o artigo de uma revista que tem apenas começo e meio, começo e fim, ou meio e fim. Sempre está faltando um pedaço essencial do artigo — assim são os meus pensamentos. Eu tenho uma infinidade de ideias, muitas vezes ideias de textos aqui para o Medium, mas não consigo publicar nenhum pois as ideias estão incompletas.

Eu não sinto fome, eu não sinto cansaço e nem sono. Eu me sinto invencível. Eu me sinto capaz, eloquente, persuasiva, manipuladora, atraente, confiante. É bizarro.

Uma vez eu dirigi por 4h sem parar e sem comer. Eu estava alucinada. Nesse dia, eu acreditei que podia andar pela contramão. Na rodovia, na contramão, imagina o risco. Eu não andei na contramão, eu tive que conversar comigo mesma, num modo exclusivamente racional, porque eu não conseguia sentir medo de andar na contramão. Eu não sentia que isso era errado. Eu só conseguia perceber racionalmente que era.

Em mania, eu já estive ao lado de gente que tinha cheirado. E olha, mania me parece exatamente a mesma coisa. Pressão para falar, falar rápido, não conseguir dormir, não sentir cansaço, ficar com os olhos arregalados. Eu nunca usei cocaína, mas consigo ter uma ideia dos efeitos só pelas minhas crises de mania.

4)

Já na depressão, o extremo oposto acontece. Eu tenho anhedonia — é o oposto de hedonismo. Eu não sinto prazer em nenhuma atividade, nada. Comida não me dá prazer, ouvir música, escrever, nada. É uma grande sensação de vazio e uma angústia no peito. Dói tanto que se parece com uma dor física. Eu não sinto alegria, nem tristeza, nem raiva, nem nada. Eu sinto nada. Eu sinto sono durante o dia e insônia a noite. Às vezes eu me arrasto entre os cômodos da minha casa. Eu acordo pela manhã e não consigo sair da cama. Espero o dia terminar para anoitecer e eu voltar a dormir. Às vezes não quero tomar banho, escovar os dentes ou pentear o cabelo. Se preciso ir ao médico, vou não querendo ir. Vou porque sei que é importante.

Às vezes minhas crises de depressão são mais severas. Sinto vontade de não tomar meus remédios. De me cortar. De passar o dia chorando. Ou o dia todo trancada no quarto.

5)

Se você não sabe, psicose é igual a embriaguez. Você já bebeu mas achou que o álcool não havia tido efeito sob você? E aí, no dia seguinte, já sóbrio, se deu conta do quão embriagado estava? Pois psicose é exatamente assim.

Você percebe algumas ideias inadequadas, pensamentos não convencionais, mas parece tudo ok, tudo dentro do normal. Até que, no momento que a psicose passa, você se dá conta do quão louco você estava.

Eu já achei que a cigarra que estava cantando no jardim estava falando em código e que os cachorros estavam se comunicando por telepatia. Já quis subir em cima do telhado de casa para sentir o vento na minha pele e já ouvi a música com os olhos.

É bizarro. É só nessa palavra que consigo pensar quando lembro dos acontecimentos. Agora que estou lúcida percebo o quão bizarras essas interpretações da realidade eram. E claro, sempre importante ressaltar, eu não estava sob o efeito de drogas. Aliás, nenhuma droga, lícita ou ilícita, que eu já tenha usado, me deu um barato tão esquisito quanto a psicose. A psicose ganha disparado de qualquer alucinógeno.

6)

A irritação, ao meu ver, é um terceiro polo do humor no transtorno bipolar. Existe a mania, a depressão, e a irritação. A irritação é realmente um modo autônomo do humor. Não tem vínculo nem com a mania e nem com a depressão.

Bom, é óbvio, na irritação eu me sinto extremamente irritadiça. Tudo me irrita. Parece que tudo entra na minha mente de modo extremamente invasivo. E me consome. Os pensamentos nesse estado são completamente invasivos também. Algo me irrita, e quando eu percebo, estou me imaginando dando murro na parede, gritando ou xingando. Eu preciso fazer uma grande força para não xingar as pessoas em volta.

Nas crises de irritação geralmente alguma música toma conta da minha cabeça e os pensamentos invasivos se desenvolver em torno dessa música. Às vezes eu me imagino me cortando, puxando os cabelos, batendo a cabeça na parede. E imaginar tudo isso se torna tão relaxante.

7)

No final das contas, parece que eu navego e navego e acabo por não saber quem eu sou. Deixa eu te contar, eu passo em psicóloga desde os 13 anos. Eu me tornei muito consciente sobre mim, mas durante essas crises todas que eu descrevi acima, eu volto a me perguntar quem sou eu.

Parece que eu nunca sei ao certo quem eu sou, quais são as minhas preferências, a minha meta de vida, o quanto eu já progredi para alcançar essa meta. Parece que eu nunca saio do lugar. Parece que tudo indica a estagnação. Isso faz com que eu me sinta péssima.

8)

Como é ter transtorno bipolar?
É sentir-se envergonhado e culpado o tempo todo.

Eu acabei de escrever um montão de coisas sobre mim e, ah, como essas coisas todas me envergonham. Claro, eu poderia não publicar. Mas manter essas coisas todas na minha cabeça nunca fez com que eu me sentisse menos envergonhada ou menos culpada. Pelo contrário, eu sempre tenho a sensação de que todo mundo sabe o que se passa na minha cabeça. Então eu penso, se eu não conto, eu estou escondendo de quem? Já que todos já sabem disso tudo.

Eu já perdi trabalhos por causa do TAB, já perdi amigos, larguei a faculdade, tranquei a faculdade, voltei pra faculdade, já terminei relacionamentos… tudo por causa do TAB. Tudo isso me causa uma constante de culpa.

E após as minhas crises eu sinto vergonha.

9)

Sobre convivência, eu sei dizer o relato das pessoas que convivem comigo.

Logo que eu voltei a ter depressão, em outubro de 2017, minha mãe não me deixava sozinha. Ela temia que eu me matasse, cortasse o pulso ou fizesse qualquer outra coisa bizarra. Eu não faria e nem queria fazer algo desse tipo. Mas considerando todo o meu histórico de distúrbios, a preocupação dela era pertinente. Ela só voltou a me deixar sozinha quando comecei a passar no psiquiatra e o antidepressivo começou a fazer efeito.

Aí o antidepressivo ciclou meu humor e eu tive uma crise de mania. E minha mãe estava sempre preocupada comigo. Onde eu estava? Com quem eu estava? O que eu estava fazendo? Fico imaginando a preocupação que cuidar de uma pessoa assim não deva gerar…

Dias atrás eu saí de casa para fazer uma ligação. Só que eu não avisei para ninguém. Quando eu chego, minha mãe pergunta: onde você foi? E eu respondi: eu só fui ali do lado de fora fazer uma ligação.

Talvez você pense que a reação da minha mãe é desproporcional ou algo do tipo. Nada. O meu primeiro psiquiatra a instruiu a ser assim. Ele dizia que bipolares podem jogar a medicação fora, mentem e que num descuido podem fazer algo muito sério contra eles próprios.

Depois, tem um amigo. Esse eu nunca consigo enganar. Eu lembro de estar com ele e várias vezes ter dito que eu estava bem, quando eu não estava. Ele sempre percebia. Ele dizia “hoje você está muito inquieta.” Eu ficava frustrada, porque não queria transparecer o meu humor ao lado dele. E ele sempre me pergunta se estou tomando meus remédios, se ainda tenho as medicações, se as dosagens estão surtindo efeito, etc, etc.

Teve uma época, quando eu estava muito mal da depressão e da mania, que eu dei minhas medicações para a minha mãe. Ela era quem me dava os remédios. Só que às vezes a minha filha quem me entregava os comprimidos. Imagina que situação tensa, sua filha te trazendo os remédios. É bizarro. Deveria ser o contrário. Às vezes percebo que minha filha entende mais da minha bipolaridade do que eu consigo imaginar.

E tem uma amiga, que sempre me manda mensagem, principalmente pela manhã e pela noite. De manhã ela me pergunta como está o meu humor, como eu estou me sentindo, e à noite ela pergunta como passei o dia e se fui à faculdade.

10)

Às vezes tenho a sensação de que essas pessoas estão com o estado de alerta constantemente ligado porque se preocupam comigo, com o meu transtorno. Deve ser complicado “cuidar” de alguém com TAB. Deve ser emocionalmente exaustivo.

Eu não sei que imagem você criou sobre mim e sobre minhas crises ao ler esse texto. O que eu posso te dizer, é que não é algo tão extraordinário, intimidador ou esquizofrênico assim. Hoje, por exemplo, me sinto levemente irritadiça, tive alguns pensamentos estranhos, sinto meu humor esquisito — eu não sei descrever — , mas consegui resolver algumas das pendências que eu tinha para resolver na rua. Fui ao mercado, marquei consulta e exame. Passei algum tempo escrevendo este texto, estou a manhã toda ouvindo música, estou quieta no meu canto.

Muitos dos eventos que aconteceram comigo ao longo desse período todo de TAB, aconteceram mais em minha mente. Poucas foram as vezes que eu efetivamente fiz alguma loucura. E todas as vezes que fiz algo incomum para os meus valores, temperamento e personalidade, eu me arrependi e me envergonhei depois. E eu só fiz porque naquele momento eu estava fora de mim, fora da realidade.

Acredito que tudo o que eu tenha para falar sobre transtorno bipolar tenha sido abordado neste texto.

Obrigada pela sua atenção.

Daniela Amadeu.

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