Crimes imaginários: suplantar (Parte 2)

Míriam Medeiros Strack
Published in
3 min readJan 30, 2019

--

(Este é a segunda parte de uma série de textos sobre crimes imaginários. Se você não leu o texto anterior sobre o que são os crimes imaginários, leia aqui).

Suplantar é um dos crimes imaginários mais comuns e, junto com sobrecarregar e roubar amor, faz parte de um grupo maior: a culpa do sobrevivente.

A culpa do sobrevivente

A culpa do sobrevivente são “sentimentos de culpa irracionais, porém intensos, vividos pelos que sobreviveram à morte de entes queridos. Essas pessoas consideram injusto continuar vivas enquanto pessoas a quem amam estão mortas” (1). Foi muito observado em sobreviventes do holocausto e casos mais graves acabaram em suicídio, já que a pessoa não se achava digna de viver (além, obviamente, de terem passado por todos os horrores nos campos de concentração).

Trazendo para uma realidade mais comum, “o sentimento de culpa do sobrevivente se baseia na crença de que ter um destino melhor que o dos nossos pais ou irmãos significa traí-los, pois o indivíduo acredita que seu sucesso tenha sido conquistado à custa deles” (2).

Suplantar

Suplantar é o crime que imaginamos cometer quando conseguimos algo que nossos pais não conseguiram. Ganhar mais dinheiro que eles; ter um relacionamento melhor que o deles; ganhar uma promoção, enquanto algum dos pais passou a vida tentando uma promoção e não conseguiu; investir enquanto seus pais não conseguem sair das dívidas; se divertir enquanto seus pais nunca se divertem; comprar algo para você enquanto seus pais mal conseguem pagar as contas; ter um casamento feliz enquanto seus pais só brigam, etc. Os exemplos são infinitos.

Essa culpa se origina em dois tipos de crença. A primeira é a de que os recursos no mundo são escassos e de que “desfrutar as coisas boas da vida (felicidade, sucesso, amor e afeto) significa esgotá-los de forma que não sobrem para os membros da família que não tiveram a mesma sorte” (3). A segunda crença é a de que se conquistarmos essas coisas, estaremos mostrando aos familiares que eles não foram capazes, ou não são capazes. É como se conseguir algo atestasse a incapacidade dos pais de conseguir o mesmo.

Uma dúvida que surge quando entendemos essa definição é: mas então porque todas as pessoas que tem vidas melhores que seus pais não se sentem culpadas? Isso depende muito da reação dos nossos pais perante nossas conquistas. Se eles se sentem orgulhosos do que conseguimos, não nos sentiremos culpados. Porém, se eles se sentem ressentidos, ou sintam que não foram capazes de conseguir aquilo, buscaremos nos punir ou nos autossabotar para nos eximirmos dessa culpa.

É importante ressaltar que o que vale é a sensação interna e individual de sucesso que os pais tem e não o sucesso em si. Se eles se sentem vitoriosos, mesmo tendo conquistado pouco, não teremos problemas. Porém, se eles conquistaram muitas coisas, mas sentem que fracassaram em suas vidas, a nossa culpa pode surgir. Poderemos achar que a infelicidade deles foi causada por nós, por termos conseguido mais coisas boas na vida que eles.

A punição mais comum para o crime imaginário de suplantar é a auto sabotagem: ao conquistarmos algo que supomos estar magoando um ou os dois dos nossos pais, imediatamente iniciamos nosso processo de auto sabotagem para perdermos aquilo. É possível que a auto sabotagem surja um pouco antes, de forma que sempre chegamos muito perto de conquistar algo, mas na última hora sempre acontece algo que nos impede de conseguir aquilo. Outra forma é simplesmente não conseguir desfrutar das coisas que conquistamos, nos impedindo de sentir felicidade por elas.

No próximo texto da série, falaremos sobre o crime imaginário de sobrecarga, que também é caracterizado com um aspecto da culpa do sobrevivente.

Deseja receber todos os meus textos da semana compilados em seu e-mail? Assine minha newsletter e não perca nada. Autoconhecimento, livros, feminismo e ficção.

Quer ficar por dentro do que rola no Introverso? Tem newsletter também! Só clicar aqui.

Gostou do texto? Você pode deixar de 1 a 50 claps ou comentar abaixo. ;)

1 LEWIS, Engel. Crimes imaginários. Por que nos punirmos e como interromper esse processo. São Paulo: Nobel, 1992. p. 63.

2 WEISS, Joseph apud LEWIS, Engel. Crimes imaginários. Por que nos punirmos e como interromper esse processo. São Paulo: Nobel, 1992. p. 63.

3 LEWIS, Engel. Crimes imaginários. Por que nos punirmos e como interromper esse processo. São Paulo: Nobel, 1992. p. 52.

--

--

Míriam Medeiros Strack
Introverso

Escritora, professora, bailarina, artista. Falo sobre consciência emocional, consciência corporal e autenticidade. Insta: @miriam.mest