Crimes imaginários: sobrecarregar (Parte 3)

Míriam Medeiros Strack
Published in
4 min readFeb 6, 2019

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(Este é a terceira parte de uma série de textos sobre crimes imaginários. Se você não leu os textos anteriores, leia aqui e aqui).

Conforme falado no texto anterior, o crime imaginário de sobrecarregar também faz parte de um conjunto maior chamado culpa do sobrevivente.

“O sentimento de culpa do sobrevivente se baseia na crença de que ter um destino melhor que o dos nossos pais ou irmãos significa traí-los, pois o indivíduo acredita que seu sucesso tenha sido conquistado à custa deles” (1).

O último trecho dessa frase diz bastante sobre o crime imaginário de sobrecarregar. Sentimos essa culpa quando percebemos que só alcançamos o que alcançamos porque nossos pais precisaram se sobrecarregar para nos dar o que tivemos. A culpa é mais forte quando não sentimos toda essa sobrecarga em nossas vidas.

Fantasiamos que se tivéssemos sido filhos melhores, mais tranquilos, mais estudiosos, mais responsáveis, mais disciplinados, etc, poderíamos ter aliviado a carga dos nossos pais. Às vezes, podemos imaginar que eles poderiam ter sido mais felizes se nós nem tivéssemos nascido.

Porém, ter pais sobrecarregados, principalmente nas últimas décadas é algo muito mais comum do que imaginamos. O que faz com que os filhos sintam esse tipo de culpa, então? Normalmente são os comportamentos e falas dos próprios pais. Se os pais tratam as atitudes infantis e imaturas dos filhos como coisas horríveis que os magoam profundamente e insinuam que você é, ou foi, um filho difícil e ingrato, podemos vir a pensar que foram essas nossas atitudes que causaram sua infelicidade. Se os pais falam que a nossa criação foi algo muito sacrificado para eles, que eles precisam sofrer trabalhando por nossa causa, ou que precisaram renunciar a sonhos por causa dos filhos, novamente podemos sentir muita culpa caso nossa vida não seja um sacrifício, nosso trabalho seja prazeroso ou quando corremos atrás de nossos sonhos. É comum também que filhos de pais separados creiam que a culpa da separação é deles, mesmo quando isso não é dito de forma direta.

Eventualmente, mesmo quando você foi um filho que “não deu trabalho”, caso sua família teve problemas mais sérios como alcoolismo, uso de drogas, traições, você pode sentir que apenas a sua existência já é um fardo a mais para ser carregado. Pensando assim, muitas vezes, desde criança, podemos negligenciar nossas próprias necessidades, pois não temos coragem de colocá-las abertamente, com medo de sobrecarregar ainda mais os problemas da família.

De uma forma bem resumida, “ao sobrecarregar um dos pais, sentimos que tomamos o tempo e a energia de que eles necessitavam para si próprios” (2). Com isso, começamos a nos punir. Uma das formas mais comuns de se punir por causa desse crime imaginário é justamente tornando nossas vidas sobrecarregadas, mesmo quando não é necessário. Você já percebeu como podemos sabotar completamente nossos momentos de lazer? Ao invés de relaxar, ficamos o tempo inteiro pensando nas mil coisas que precisamos fazer assim que voltarmos e não nos permitimos realmente curtir o momento. Fazer isso, na nossa mente culpada, seria uma afronta a nossos pais, já que os mesmos não tinham chance de relaxar por estarem sobrecarregados conosco (ou é isso que sua culpa quer que você pense).

Outra forma bem comum de punição, já mencionada nos textos anteriores, é a auto sabotagem. Quando percebemos que estamos indo em direção à algo que desejamos, um sonho, uma promoção, momentos de felicidade, começamos a nos auto sabotar se percebermos que nossos pais não tiveram aquilo por precisarem cuidar de nós. Podemos nem chegar a conseguir o que queremos. Porém, se conseguirmos, passaremos o tempo inteiro sentindo culpa e nos punindo de outras formas, pois julgamos que conseguimos isso às custas de nossos pais.

No próximo texto, falarei sobre o crime imaginário de roubar amor, o último dos crimes que faz parte da culpa do sobrevivente.

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1 WEISS, Joseph apud LEWIS, Engel. Crimes imaginários. Por que nos punirmos e como interromper esse processo. São Paulo: Nobel, 1992. p. 63.

2 LEWIS, Engel. Crimes imaginários. Por que nos punirmos e como interromper esse processo. São Paulo: Nobel, 1992. p. 66.

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Míriam Medeiros Strack
Introverso

Escritora, professora, bailarina, artista. Falo sobre consciência emocional, consciência corporal e autenticidade. Insta: @miriam.mest