Nossas dores não duram pra sempre

Caio Corado
Introverso
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8 min readApr 9, 2019
Pôr do sol que vi saindo de um mercado em Taguatinga, Brasília.

Durante a minha crise depressiva, tinha dias que eu sentia dores que pareciam não ter fim. Eu jurava que elas não iam passar e que não tinha como eu resolver os problemas que me apareciam. Eu tinha certeza que a única solução era não estar ali, não estar consciente. Li em algum lugar que depressivos procuram resolver isso se entorpecendo, dormindo ou mesmo deixando de viver e fez muito sentido. No meu caso, dormir era o mais fácil e o que mais me atraía, porque eu não tinha disposição pra quase nada. Então, eu acabava dormindo horas e horas nas aulas ou enquanto tentava estudar em casa. Lembro das minhas tardes não servirem pra nada mais além de um cochilo de quatro horas. Às vezes, eu nem tinha a intenção de dormir mesmo, queria só deitar no sofá, fechar o olho e tentar equilibrar os pensamentos pra me sentir melhor. Mas aí eu dormia.

Nesses dias, esse sofrimento vinha e se assentava como se assenta pó sobre móveis; não poeira, mas sim pó, que não sai se você simplesmente assoprar, você precisa fazer uma limpeza mais minuciosa. Junto desse sofrimento ainda se formava um humor mórbido, parado, que me deixava sério e sem vontade de nada. E aí, a sensação era que o dia ficava como um dia de céu nublado, que não dá pra ver nada do azul dele e de um horizonte ao outro só tem nuvens cinzas. Mas também não é um cinza escuro, é um cinza quase branco, uma cor branda e constante, assim como era o sofrimento psicológico que eu sentia.

Registrei muitas dessas sensações numa espécie de diário, que era um caderno que comprei só pra esse fim. Escrevi esse trecho no dia 14 de maio de 2018, numa segunda, a caminho da minha faculdade:

“Hoje eu não quero me manter em pé, não quero me manter acordado. Não quero o corpo em movimento e nem a cabeça trabalhando. Meu cansaço é um cansaço físico que não parece ser meramente físico; é um cansaço pesado. Acho que também é um cansaço psicológico. Tenho mais seis horas de faculdade e estou considerando ir embora agora mesmo. Seis horas de sono seriam lucro muito maior.

E eu cansei de me fazer ficar bem. Isso geralmente significa disfarçar e esconder, empurrar a sujeira pra baixo do tapete. Ontem, à noite, eu fiz isso. Passei o dia inteiro de mau humor, deprimido, e no fim dele “fiquei bem”. Algumas pessoas entenderam esse ciclo como ressaca e isso me irrita. Não tenho direito de estar de mau humor, é ressaca. Sono? Cansaço? Não, bebi e estou de ressaca!”

Naquele metrô cheio, às 7h, eu parecia só mais um passageiro normal; só mais um par de mãos segurando nas barras de metal, entre tantos outros. Ninguém desconfiava o que eu escrevia naquele caderninho e como eu me sentia. E mesmo que alguém tenha lido discretamente, enquanto eu formulava uma frase, distraído, não deve ter entendido muito bem. A gente nunca sabe o que se passa dentro dos outros, por mais que eles transpareçam algumas poucas coisas.

A situação era complicada porque eu não conseguia me convencer que aquilo era um estado temporário e que ia passar. Na verdade, eu nem cogitava tentar me convencer de algo, eu só sofria e sofria. Às vezes, eu até acordava de bom humor, com bastante disposição e muita vontade de fazer várias coisas. Era como se um espacinho se abrisse entre aquelas nuvens cinzas e eu pudesse ver um pouco da cor do céu e tomar uns minutos de sol; era de alegrar. Nesses dias, eu saía e andava de bicicleta, ia ver algum amigo, comia em algum lugar legal, tomava um sol, respirava fundo, aproveitava o tempo como dava e me sentia vivo. Sim, vivo; é que a minha doença, assim como já vi outras pessoas descreverem por aí, me deixava meio morto.

Nesses momentos eu matava as aulas da faculdade, elas pareciam não valer a pena; no meu subconsciente, eu não tinha perspectiva de futuro e ir pra faculdade perdia o sentido. Acho que, fazendo isso, evitei alguns desgastes e conservei um pouquinho mais minha cabeça. Faculdade não é um lugar lá muito saudável pra quem está com a saúde mental debilitada; eu diria que é um ambiente hostil, mas é claro que essa é minha opinião que é baseada na minha própria experiência, ou seja, não é uma regra ou uma recomendação.

Voltando à descrição do que eu sentia, eu só pude sair daquele estado de morbidez com a ajuda de medicação. Eu não ficava daquele jeito o tempo todo, mas aquilo era frequente e demorava pra passar. O remédio criou condições pra eu começar a me ajudar a reagir à doença. No dia 17 de julho de 2018, meu décimo primeiro dia de bupropiona, eu escrevi sobre isso:

“Enfim me sinto uma pessoa novamente. Não fui curado, mas agora começou uma etapa nova. Tenho muito o que fazer, tenho muito trabalho pela frente, mas sinto ser capaz e isso faz muita diferença. Em um futuro próximo, não vou chegar aos abismos que cheguei e não vou mergulhar nos oceanos profundos que mergulhei. As coisas estão começando a se colocar no seu lugar e eu finalmente respiro um pouco mais aliviado.”

Se eu fosse religioso, teria rezado muito pra sentir logo o efeito quando comecei a tomar meu remédio. Àquela altura, tudo o que eu queria era um alívio. Por mera coincidência, a primeira semana de medicação foi a pior semana que eu tive em muito tempo, mesmo não sentindo nenhum efeito colateral do medicamento. Todos os sentimentos ruins que eu costumava ter resolveram se agravar naqueles dias. Eu não imaginava que poderia piorar daquela forma, mas piorou. Piorou muito e em pouco tempo.

Novamente, o que eu sentia parecia infinito, inacabável. Foi uma semana dura. Cada dia era ruim de um jeito diferente e eu estava torcendo muito pro remédio me proporcionar alguma melhora. Eu pensava que só tinha que conseguir atravessar aqueles dias e esperar o efeito se estabelecer e isso me ajudou a aguentar. Pra colocar essa experiência numa metáfora, que é o melhor jeito de se descrever uma depressão, eu diria que era como estar submerso na água, bem fundo, e ter que nadar até a superfície a tempo de não perder o fôlego. Mas ele só diminuía e diminuía. E a vontade de respirar aumentava e aumentava. Era muita angústia.

No oitavo dia de remédio, foi como ter chegado à superfície e recuperado o fôlego. Os antidepressivos costumam demorar pelo menos quinze dias pra fazer efeito, mas eu tive sorte e comigo foi mais rápido. Não sei se aquela melhora se deu mesmo por causa do remédio e também não diria que foi uma cura repentina; metaforicamente, eu ainda precisava sair da água, mas estava agora boiando e bem mais tranquilo. Aqueles sentimentos confusos e pesados tinham se tornado menos frequentes e eu podia tratar deles com mais calma. Então, eu vi que afinal aquela dor e aquele sofrimento podiam sim ter um fim que não fosse o meu próprio. As coisas podem até piorar, mas elas vão melhorar, isso é certo. A gente só precisa de tempo e quando é assim a gente tem que ser paciente. E mesmo quando a paciência acabar, ainda tem o que fazer. Dá pra respirar fundo, chamar alguém pra conversar e encontrar a sua paciência de novo. Numa das consultas com meu psiquiatra, lembro que ele me disse que “as dores não duram pra sempre, né Caio?” e é exatamente isso que eu quero te dizer com este texto, você que se identifica com o que eu relato aqui. Isso acaba sim, pode acreditar!

Nas semanas seguintes, eu ainda sofri e muito com a doença. Mas também tive uma melhora gradual; cada bem estar a mais era mais um motivo pra eu me esforçar e ficar bem. Subi uma escadinha, de degraus curtos; antes que eu me desse conta, tinha subido vários deles. De repente, conseguia olhar pra trás e ver a doença que ofuscava o Caio que eu era e que agora começava a se dissipar e deixar eu aparecer de novo. Isso se deu mais ou menos em dezembro de 2018, com quatro meses de medicação, e eu também escrevi sobre:

“Me sinto muito bem. Agora, quando algo ruim me acontece eu não fico deprimido. Pode até ser que eu fique triste, mas é um sentimento manejável e leve, que não toma conta de mim. Agora, eu tenho dias de calma ou de estresse, de disposição ou indisposição, de alegria ou de tristeza e às vezes até me sinto deprimido. Mas já não tenho dias deprimidos e só deprimidos. Sorrio, converso e sou leve. A doença já não me controla, agora eu que controlo ela.”

Eram coisas demais acontecendo e eu não conseguiria sair daquilo sem a ajuda da psicóloga, do psiquiatra, da família e dos amigos; cada um deles me ajudou a colocar alguma coisa de volta ao seu lugar. E o melhor de estar bem é a satisfação de viver sem os sintomas graves da doença. Pegar um metrô lotado não me faz querer desaparecer, por exemplo. Poder estudar, acordar cedo, comer bem e lavar uma louça são coisas que hoje me deixam realizado, porque antes eu me sentia mal demais pra fazer elas. Levar uma vida normal é possível e é bom.

Essa transição de controlado pela doença pra controlador da doença também foi muito gratificante. Fez eu me sentir engrandecido e orgulhoso, além de me inspirar uma maturidade nova, que me faz olhar pras coisas com sobriedade e saber observar o que se passa ao meu redor, o que fazer e como reagir. Agora, eu me pertenço.

Pra concluir a mensagem que tenho tentado te passar nesses parágrafos, eu quero deixar aqui uma das verdades que essas experiências me trouxeram: é impossível não sofrer; estar vivo é estar fadado a sofrer. Às vezes, inclusive, de doenças como a depressão. Mas não é só isso… A vida é uma sucessão de sofreres e felicidades, de guerra e de paz, que sem sombra de dúvidas vale a pena viver.

Hoje, dia 9 de abril de 2019, é isso que eu vou escrever naquele meu caderno:

“Voltei pra faculdade e já não sinto necessidade de trocar seis horas de aula por seis horas de sono. A doença minguou muito e eu cresci bastante; já quase não enxergo ela em mim. Tenho paixão pelo que estudo, apesar de ser estressante às vezes. Afinal, nada é perfeito. Tenho muito interesse e gosto pela vida que levo e olhar pra onde estive e pra onde estou me faz sorrir e sentir satisfação, me mostra do que sou capaz e porque quero estar vivo.”

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Caio Corado
Introverso

Estudante de Letras na Universidade de Brasília e aspirante a escritor.