Nós, Hackers

Anderson Ramos
IO Publishing
Published in
5 min readNov 5, 2015

Sempre construímos coisas, não é apenas uma compulsão. Aceitamos de maneira serena que esse ímpeto é uma força que nos usa apenas como instrumento. Mas não construímos coisas triviais: temos uma propensão natural por tudo aquilo que parece mágica.

Muitos anos se passaram entre a invenção do telégrafo e a construção das primeiras linhas de transmissão. Motivo? Ridículo: achavam que o domínio da eletricidade era algum truque, uma pegadinha que seria desmascarada a qualquer momento.

Construímos porque temos essa necessidade. Alguns de nós se convenceram (ou foram convencidos) que coisas secundárias também eram importantes. Como proteger invenções de serem copiadas? Como ganhar dinheiro com elas? Mas admiramos mesmo aqueles que não estavam nem aí pra isso.

Admiramos ainda mais ideias apócrifas que nem dono tem. Seja porque seu criador fez questão de não aparecer, ou porque a história mostrou que não eram necessariamente criação de ninguém, e sim uma espécie de revelação que se materializou de forma tão dispersa que nem cabe o conceito de "autoria".

E porque problemas antigos sendo resolvidos de maneira repetida não nos interessam, gostamos de soluções que pertencem a todos. Tudo bem o Teorema ser do Pitágoras, ideias boas merecem mesmo batismo, mas que sentido faria se estivéssemos até hoje pagando royalties pro defunto?

Nossa piração é o teorema, seu brilhantismo. Nossos heróis tem níveis de genialidade que nem sempre todo mundo percebe. Você não vai encontrá-los usando um pau de selfie, e talvez você nem saiba porque eles são gênios.

Nós sabemos.

Teorias, aliás, são importantes, especialmente quando elas organizam a genialidade de maneira retroativa, explicando de maneira elegante aquilo que já está feito. Mas esse é o barato: primeiro a gente faz. Primeiro medimos a hipotenusa e os catetos de vários triângulos retos até encontrarmos uma solução para o problema. Depois o teorema surge na nossa cara, é o que vocês chamam de manifestação divina.

Vocês muitas vezes curtem teoria sem mão na massa. Passam anos discutindo se a desigualdade social é culpa do pobre ou do rico. Inventam retóricas elaboradas para manipular os tolos e transformar a sua conveniência em fato. Nós não: nossa compulsão é a verdade, por mais herege que ela possa soar.

Hardware Hacking Village na Def Con 23 — Foto: Willian Caprino

De mágica em mágica, construímos quase tudo que te deixa maravilhado, numa mágica que conecta. Vocês não: sempre curtiram a segregação. Nossos truques colocam mais pessoas em contato e menos autoridades no caminho. Até que vocês sequestram nossos truques sob o pretexto de tentar colocar ordem, mas nossa onda mesmo é o caos.

Não o caos da tua vida cheia de contas pra pagar, compromissos confusos e estéreis, trânsito de excessos extravagantes. O caos mesmo: esse que aparentemente testemunhamos, numa pedrinha flutuando perdida entre o infinito e a imensidão. Sábio Carl Sagan.

Vocês tentam se apoderar dessa mágica que nem é nossa, escrevendo os truques num livro pra ser escondido. Às vezes até vendem cópias por um custo artificial que vocês mesmos inventam. Só pra contrariar, revelamos os truques pra todo mundo em rede nacional, explicando do começo ao fim pra que fiquem claros até para quem não entende num primeiro momento.

Suas preocupações são bizarras. Qual o corte de cabelo que todo mundo tá usando? Meu corpo tem as proporções da revista? Pra nós só importa o conhecimento e vocês, enquanto podem, caçoam da gente. Se deslumbram rápido com a violência achando que a força vale mais, mas nada bate a verdade.

Só que vocês não gostam da verdade.

Nós a cultuamos, de maneira incessante, até mesmo em trivialidades que às vezes nos alienam no convívio social. Sem essa de omitir coisas importantes em momentos fundamentais por "educação". Essa educação não temos e isso incomoda, nos excluem em micro guetos nos quais nos isolamos, às vezes por opção (ou por falta dela).

No isolamento construímos e compartilhamos coisas que impressionam geral. Vocês chegam com décadas de atraso e se estabelecem como marco histórico, enquanto assistimos sem clamar por essa glória que vocês tanto necessitam. Pode continuar achando que a comunicação instantânea surgiu quando tua avó aprendeu a mandar WhatsApp.

Vocês criam armas de destruição em massa, mas nós preferimos as defesas de construção individuais. Se esforçam para que poucos tenham voz e que essa seja a narrativa coletiva, enquanto nós construímos espaços individuais para que o coletivo tenha apenas uma narrativa.

Vocês relativizam o valor até daquilo que lhes é mais caro. Criam bancos centrais que escolhem em poucas canetadas quem paga as contas da ganância de poucos. Nós criamos o bitcoin e o blockchain pra mostrar os reais custos do egoísmo, pra garantir que governos não possam livrar seus comparsas mandando a cobrança pra muitos.

Car Hacking Village na Def Con 23 — Foto: Willian Caprino

Falando assim parece que somos perfeitos: longe disso. Estamos sempre perto demais do limite clichê entre o bem e o mal: bandidos, policiais, ativistas, militares, peritos, gestores, justiceiros, ou aquilo que simplesmente chamam de menino ou menina do computador.

Aliás, somos sempre o novo, e os novos estão sempre do nosso lado, independente da idade. Somos a fantasia de um mundo sem vocês, lotado de super-heróis com poderes no limite do possível, possibilidade essa que estamos sempre a desafiar.

Pode até parecer que dentro de nós sobra ódio, mas no fundo sabemos que somos todos vítimas de um contexto, que pra vocês é essa necessidade de achar que ditam as regras.

Mas nessa nossa compulsão reservada e tímida, discretamente, assumimos o controle. Construímos uma camada de tecnologia que sabe de tudo: quanto você ganha, com quem fala, pra quem trabalha, em quem vota, ou o que você busca quando toma um pé na bunda.

Podíamos apertar um botão e te ejetar pra fora do seu mundo, mas nos distraímos encontrando e corrigindo problemas naquilo que criamos. Por mais que a essência nos una, somos diversos demais para aceitar um movimento único e controlado que vire teu mundo de cabeça pra baixo.

Mas estamos aqui, observando aqueles que vocês acham que realmente te observam, nessa sua fantasia de que o mundo se limita a sua compreensão.

Talvez um dia a gente resolva apagar aquilo que vocês chamam de dinheiro, expondo as manipulações que vocês chamam de história, explodindo as armas que vocês chamam de paz.

Mas sabe o que é mais provável? Que nós vamos continuar aqui, construindo coisas que tornam obsoleto o sistema que vocês chamam de verdade.

Siga-nos no Facebook, Twitter e Linkedin. Assine nossa newsletter e receba novidades toda a semana.

--

--

Anderson Ramos
IO Publishing

CEO e co-fundador da Flipside, idealizador do maior ecossistema de cyber segurança do continente (Hackaflag, Eskive, Roadsec, Mind The Sec, The Hack)