Uma breve reflexão sobre o mito da democracia racial no Brasil.

Henrique Cacique
ioasys-voices

--

Texto originalmente escrito em novembro de 2021, em interface ao mês da consciência negra. Sua construção é fruto de meses de conversas e acolhimento entre os membros do grupo que debate questões raciais na ioasys. Faziam parte do grupo naquele momento: Angelo Henrique, Danieli Fernandes, Henrique Cacique, Julia Correa e Mariana Oliveira.

___________________________________________________________________

O mês da consciência negra é um tempo importante para alavancar discussões e trazer luz para as pautas raciais em diversos setores da sociedade. No entanto, nós acreditamos que esse seja um tema que deve estar presente no nosso dia a dia, o ano inteiro e fazendo parte das práticas que orientam a essência da nossa cultura.

Por esse motivo, aqui na ioasys, um dos seis núcleos que formam o Comitê de Diversidade é dedicado inteiramente a questões raciais. Por meio desse grupo, nós conseguimos articular discussões, ações e realizar um acolhimento afetivo de pessoas que possam eventualmente se sentir em uma situação de vulnerabilidade.

Muitos assuntos são tratados nos encontros do grupo semanalmente. Sempre surgem boas oportunidades para aprender coisas novas e ouvir histórias que nos ajudam a construir o nosso entendimento sobre a importância de sermos uma empresa que se preocupa em tornar as relações raciais parte da sua cultura.

Neste breve texto, nossa ideia é contar para vocês um pouco sobre os temas centrais que são trabalhados nos encontros do nosso núcleo, trazendo de forma introdutória alguns conceitos que são essenciais para nos ajudar a problematizar nossas relações raciais, não só aqui na ioasys, mas em todos os âmbitos da nossa vida.

No cenário atual da sociedade brasileira, muitas vezes nos vemos perplexos e paralisados diante de cenas absurdas de discriminação e preconceitos raciais que inundam nosso dia a dia, mesmo assim, parecem resultar em pouca, ou nenhuma, evolução nas nossa atitudes de reparação histórica.

Nesse contexto, é importante evidenciar que muito do que acontece sequer é notado, e de certa forma é intencionalmente afastado dos nosso olhos pela falsa ideia que na nossa sociedade já superou os abusos dos instrumentos de descriminação racial seculares, que mesmo após a abolição da escravidão, em 1888, negaram aos negros acessos básicos a saúde, educação, moradia e vida politica, colocando nossa população negra, historicamente, em profunda desvantagem.

Esses instrumentos de opressão ainda se mostram extremamente vivos e escancaram feridas da nossa sociedade que dificilmente se calarão e necessitam da nossa total consciência para que as raças hegemônicas assumam minimamente sua responsabilidade.

Não na perspectiva de salvadores, mas na perspectiva de serem verdadeiros opressores, detentores do poder e dos privilégios e que reproduzem de forma estrutural e institucional o racismo explícito e o velado.

Assumir que o racismo não é um problema do indivíduo isolado, mas sim das estruturas de poder que dominam e danificam há séculos nossas relações raciais, é o primeiro passo para produzirmos ações que sejam efetivas para mitigar a opressão e a discriminação.

O mérito não pode ser o parâmetro definidor em um cenário onde a população negra nunca gozou dos mesmos acessos, círculos sociais e oportunidades das pessoas aceitas pela branquitude. Excluídas pela cor da sua pela e pela sua cultura, em um sistema que insiste em ser mascarado pela cruel ideia de uma democracia racial.

As características institucionais e estruturais do racismo nos tornam, todos, racistas até que iniciemos uma longa caminhada de conscientização, aceitação e reparação. É inaceitável permanecermos na inércia, no conformismo e negação dos nossos abismos sociais. Ao mesmo tempo é urgente a necessidade de rompermos as bolhas de privilégios e assumirmos posturas antirracistas, seja para produzir efeitos maiores na sociedade inteira, ou para mudar pequenos hábitos dentro de nós mesmos.

Ainda falando sobre mitos e fenômenos que constroem a chamada democracia racial, um dos temas que é bastante discutido dentro do núcleo de questões raciais do nosso Comitê de Diversidade é o Colorismo. Mais do que um fenômeno social, o colorismo é um instrumento que influencia diretamente na vida de pessoas negras e é definidor no que diz respeito à garantia de acessos aos direitos essenciais e oportunidades de vida que citamos anteriormente.

O Colorismo é uma teoria, estruturada na década de 80 pela escritora norte-americana Alice Walker, que diz que os direitos e acessos de uma pessoa negra são determinados pelo tom de pele. Nesse sentido, a escritora sugere que quanto mais retinta for a pele da pessoa, mais exclusões, discriminações e opressões a pessoa passará no decorrer de sua vida. Considerando isso, podemos compreender que pessoas negras miscigenadas — com a pele menos retinta, recebem certas vantagens. Essas pessoas são lidas e aceitas pela branquitude de forma mais fácil, ainda que sofram preconceitos.

Dessa forma, mesmo em uma análise superficial sobre os sistemas históricos de miscigenação no Brasil, é possível constatar que o embranquecimento de nossa população foi construído de uma forma violenta, que reflete ainda hoje as ideias propostas pelo colorismo, além de sabidamente, serem um retrato da exploração sexual e dos abusos emocionais sofridos pelas mulheres negras durante as décadas.

O colorismo também propõe fenômenos, como a construção de novas identidades que sugerem a formação de grupos de privilégios e nos conduz a um apagamento histórico da identidade racial nossa população negra. Sendo inclusive um instrumento para negar o direito essencial a ser negro, por meio da criação de padrões estéticos característicos da miscigenação da nossa população.

Por esse motivo, o colorismo nos distancia das nossas verdades, torna processos de autoconhecimento mais complexos e nos deixa emocionalmente vulneráveis. É um instrumento que precisa ser constantemente problematizado e evidenciado, como forma de entender os impactos desse fenômeno social na criação e manutenção das desigualdades raciais.

Diante dos mitos, das imposições e das barreiras criadas pelo colorismo e pelo mito da democracia racial, muitos de nós crescem distantes das nossas verdades. O autoconhecimento é um caminho longo, porém libertador. É uma jornada individual e para percorrê-la, é preciso se distanciar dos instrumentos que a todo momento tentam colocar a prova quem somos e nos impor padrões estéticos, comportamentais e culturais que não fazem nada além de destruir nossa individualidade.

Se entender como pessoa negra é um processo individual. Que, como dito anteriormente, necessita de movimentos contrários à corrente. É preciso se dedicar e entender que esse momento pode ser transformador na vida de cada um. Nesse caminho, você poderá sofrer com as dores de entender que o preconceito, a descriminação, a opressão e falta de oportunidade sempre estiveram ali, caminhando ao seu lado, te atravessando e construindo, mesmo sem o seu consentimento, um lugar para você na sociedade. Determinando pontos muito importantes da sua vida, que muitas vezes você mesmo nunca foi capaz de concluir.

Muitas vezes as pessoas mais próximas de você, são as responsáveis por essa construção. São elas que, no decorrer da sua história, construíram as narrativas que hoje fazem quem você é. São elas que estão próximas o suficiente para atingir nossos círculos mais íntimos de afinidade. Transformando nossa identidade em vulnerabilidade, nossa cultura em fardo e nosso emocional em cinzas do tempo.

Se conhecer é antes de tudo assumir para si a responsabilidade diante dos sistemas estruturais de privilégios e opressões. É reivindicar para si o poder e o direito de determinar o seu próprio lugar na sociedade, ou até mesmo de entender a sua responsabilidade diante da reparação histórica dos fatos. É também reconhecer que em você existe um instrumento de poder e uma luz, que sim, são importantes para outras pessoas, são importantes para sua geração e para o seu tempo.

Não há tempo para calma. Muito já foi perdido, muito já nos foi roubado e muito já nos foi negado. É hora de todos nos unirmos para construir um legado de força e resistência para as futuras gerações. Também é hora de olharmos para nós mesmos, nos conhecer intimamente, nos proteger emocionalmente e nos fortalecer. Buscar nas nossas raízes a força da nossa ancestralidade e lutar para que todos os mitos caiam.

Referências Bibliográficas:

DOMINGUES, Petrônio. Mito da democracia racial e a mestiçagem no Brasil (1889–1930), Diálogos Latinoamericanos, Número 010, Universidade de Aarthus, 2005.

NORBERTO, Douglas; SILVA, Matheus. Quanto mais escuro, menos aceitação’: como colorismo afeta os negros. Guia do Estudante. 16 de julho. 2021. Disponivel em: https://guiadoestudante.abril.com.br/estudo/quanto-mais-escuro-menos-aceitacao-como-colorismo-afeta-os-negros/. Acesso em: 10 de novembro.2021.

MELO, Lais. Você sabe o que é Colorismo?. Politize. 11 de novembro. 2019. Disponível em: https://www.politize.com.br/colorismo/?https://www.politize.com.br/&gclid=Cj0KCQiA-K2MBhC-ARIsAMtLKRtcBIZLOZiOatJ2WgM1lrg4ZehC4p30gDK3tnvhJ1j_kj2A0Gb8Iv0aArotEALw_wcB. Acesso em: 10 de novembro. 2021.

--

--