Em nome do Pai, do Filho, e do Partido também.

Os dias em que Lula, Collor e Brizola
esvaziaram uma igreja.

Andrey Damo
Irmãos de Criação

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Domingo, primavera de 1989, e eu estava pronto para ir à missa, que começava nove e meia da manhã. Chamávamos apenas de culto — a Igreja Católica usa esse termo quando quem preside a celebração é alguém da comunidade, não um padre.

Em Formosa do Sul, município onde me criei no interior de Santa Catarina, na época com mil eleitores, todos vão ao culto na pequena igreja local, de madeira, pintada de azul e rosa. Pela fé, pelo hábito, pra agradecer ou, simplesmente, pra se livrar do compromisso rapidamente. Terminada a hora de oração, ao contrário da cidade grande onde todos se dispersam, lá as pessoas se juntam em frente à escadaria, em pequenos círculos, divididos rigidamente por gênero: homens e mulheres dispõem-se a interagir e tratar da semana. Conversam, fazem algumas piadas, elas voltam pra suas casas, eles vão para o jogo de bocha ali perto ou seguem para um carteado, nos bares ao lado. Poucas vezes isso não aconteceu.

Eu, então com oito anos, tinha meus interesses em cumprir essa agenda com algum rigor. Ir à igreja e ficar quieto durante a cerimônia me garantia o direito de assistir à Fórmula 1 e, no almoço, dois copos de Coca-Cola.

A liturgia do culto seguia um protocolo resumido, ou seja, quase tudo que precisava ser lido, cantado, orado, cabia num folheto, numa folha de papel A4 perfeita para, inclusive, virar um aviãozinho. Algumas vezes passei as celebrações confeccionando as dobraduras de papel e sempre quis atirar alguns deles no altar enquanto levantavam o cálice e chamavam pelo Espírito Santo. Achava que isso me tornaria um herói junto aos meus amigos; levaria uma surra dos meus pais, é claro, mas ainda assim valeria a pena pela pura rebeldia.

A Igreja Católica tem diferentes ritos para diferentes eventos. Se você já assistiu à Missa do Galo beliscando o chester frio da ceia natalina, sabe que aquele é um evento máximo, com pompa, cânticos em latim, discurso rigoroso e planejado. Em um domingo comum não funciona assim; às vezes o padre é o maior interessado em ser despachado, falar brevemente, livrar-se logo da função, até porque vai encarar mais algumas dessas horas no mesmo dia.

Esse ritual todo, no entanto, é hermético. Ele é conduzido por um livro vermelho, às vezes preto, que um padre pouco experiente abre, folheia, fecha e se perde: chama-se missal. Ali estão as leituras que serão proferidas na liturgia, além dos salmos e aclamações. Para cada época do ano existem textos diferentes, acessados em distintos livros dos evangelhos bíblicos.

Missal romano. As fitas coloridas ajudam a marcar os textos corretos, em geral, preparados antes da missa.

O missal é também um documento que contém séculos de tradição regida pela Congregação para a Doutrina da Fé, órgão ligado à Santa Sé e presidido durante anos pelo há pouco Papa, Joseph Aloisius Ratzinger. Durante o papado de João Paulo II, Ratzinger, que era seu amigo, encarregou-se do cumprimento ortodoxo da liturgia católica sentenciando à excomunhão quem procurava “inovar” dentro da igreja.

1989 fora um ano particular no Brasil, tanto no campo político quanto no religioso. Naquele tempo Jesus encontrou os partidos, os partidos encontraram Jesus — nada novo — e desse casamento nasceu a Teologia da Libertação no país. É claro que estou sendo reducionista, a história não é bem assim, mas naquele momento a visão política e libertária propagada pela redemocratização ajoelhou-se, inclusive, lá no meu culto dominical.

Se levarmos em conta a falência camponesa dos anos 80 e 90, a reza era um alento, ao mesmo tempo que prometia terra e uma economia mais justa. Não estamos falando também de casos isolados. Era uma situação praticamente generalizada e que, de alguma forma, ligava os colonos, dando àquele contexto que envolvia reforma agrária, romarias da terra e eleições um certo senso de comunidade e um tom messiânico. Se Ratzinger tivesse tido a oportunidade de entender a cena toda, talvez mudasse um pouco seu discurso. Mas imagino que o que lhe chegou aos olhos foi uma cópia do meu folheto do culto, intitulado "Todos Irmãos".

No meu aviãozinho litúrgico o protocolo é diferente do missal comum, ele foi adaptado. Se considerarmos a primeira parte de uma missa normal, você será acolhido, ouvirá duas leituras entremeadas por um salmo, ficará de pé, proclamará o evangelho, sentarse-á e deixará o celebrante fazer o seu discurso. Aqui é onde Jesus “fala” para os fiéis e é quando o povo de deus aproveita para dar uma olhada na roupa dos companheiros ou ensaiar uma soneca.

No meu folheto, produzido, datilografado e mimeografado pela paróquia local, não há o evangelho, uma falha gravíssima. Ele foi simplesmente sacado e isso já seria suficiente para Ratzinger ter espasmos.

Nesse roteiro, o momento agora chama-se: Tema de Reflexão. É aqui que entram em cena Ratzinger e Leonardo Boff, um dos profetas da teologia da libertação — e Jesus sai de fininho. Por essas e outras, Boff foi obrigado a calar-se por um bom período, que culminaria logo em seguida com sua excomunhão da igreja católica.

Esses folhetos pareciam-se uns com os outros. Eram eleborados pela Diocese de Chapecó, cidade à qual Formosa ficava “pastoralmente” submetida e espécie de sede administrativa local da Igreja.

Abaixo um outro exemplo de folheto, na mesma linha editorial, agora customizado para celebrar o dia do agricultor, tema carregado de simbolismo político e religioso.

Imaginem que uma celebração especial não terminará em uma hora — não haverá um outro contexto tão particular para falar sobre a luta dos oprimidos contra os poderosos. Então, melhor explorar bem o tema pra que fique absolutamente claro. Nesse momento a liturgia utiliza o gancho de uma leitura que acabara de acontecer, faz uma pausa e os fiéis reúnem-se em grupos para refletir sobre a situação em que estão metidos e eventualmente passar pelo constrangimento de encenar um pequeno ato, como provoca o item 6-b abaixo.

Em seguida, o povo faz seus pedidos, suas preces. Em uma missa normal, os pedidos são mais ou menos assim:

Para que o Senhor conceda à santa Igreja
muitos pastores dóceis à voz do Espírito Santo,
como São N. e São N.,oremos, irmãos.

Para que o Papa N., os bispos e os presbíteros
guiem com zelo apostólico, à luz da fé,
o povo santo que Deus lhes confiou,
oremos, irmãos.

Para que os homens a quem Deus concedeu dons
de riqueza, de sabedoria ou de bondade
os ponham ao serviço dos outros,
oremos, irmãos.

Para que aqueles que, depois de iluminados,
se afastaram do caminho da verdade
se convertam de novo ao Evangelho,
oremos, irmãos.

Para que o Pai atraia a Cristo Salvador,
com a força e a suavidade do Espírito,
os homens que vivem na indiferença,
oremos, irmãos.

Vejamos na missa “do agricultor”:

Toda liturgia libertadora tem música, ela tem um papel agregador. Esqueça a Missa do Galo e corais enfadonhos. Aqui os cantores estão misturados aos fiéis e não há hierarquia, embora cantar na igreja dê um certo prestígio. São cinco ou seis pessoas engajadas, que chegarão pouco antes de tudo começar e anotarão em um pequeno quadro o que será cantado em cada momento. Violões são bem-vindos, mas na falta deles o puxador entoará o cântico previsto. Quem souber a letra ajuda e os mais talentosos farão a segunda voz no refrão, assim como faz uma dupla sertaneja.

Os cantos nas celebrações são periódicos, não apenas pra que não enjoem, mas para rejuvenescer as melodias e atualizar as letras. Por exemplo, todo ano a CNBB lança a Campanha da Fraternidade, uma espécie de norte temático pra ser discutido país afora, junto com um combo lírico. Naquele período, vejam como eram as canções.

A essa altura pode-se imaginar que nem todos os fiéis estão satisfeitos com o andor. Ainda que a situação péssima da agricultura familiar os colocasse em um mesmo patamar, politicamente haviam enormes divergências. Basicamente, rezavam e cantavam juntos, na mesma igreja, PT e PDS, esquerda e direita, libertários e conservadores. Assim como hoje, porém com um certo ódio tácito, já que, bem ou mal, todos sabiam quem votava em quem e posso afirmar que o escopo das urnas ficava nesse espectro: Lula, Brizola, Collor e Maluf.

Ainda em 89, pouco antes das Eleições e ainda durante a celebração do culto dominical, um fato dividiria a comunidade de fiéis. Logo após a comunhão, momento mais importante do ritual católico, um dos celebrantes aproxima-se do microfone e quebra o silêncio reflexivo:

"A partir de hoje até as eleições, vamos aproveitar esse momento importante para conhecer melhor nossos candidatos a presidente. A cada domingo traremos uma curta biografia de cada um deles. Vamos começar por Luiz Inácio Lula da Silva".

Metade da igreja levantou-se e saiu, o que não é menos que um desaforo.

Não houve a roda dos homens falando amenidades depois do culto, nem na semana seguinte, quando foi lida a biografia de Fernando Collor de Mello ou ainda de Leonel Brizola. Apenas Enéas, dias depois, fez com que, afinal, todos esperassem até a última benção.

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