A prática como formação

Serviços-escola oferecem espaços de prática aos alunos por meio de atendimento prestado à comunidade

Isabel Linck Gomes
Isabel Linck Gomes
8 min readJul 9, 2019

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Foto: Gustavo Diehl/Secom

“Aprendemos a nos abrir para o novo, pois todo encontro nos reserva algo e temos que estar dispostos a acolher ele.” É assim que a estudante do 9.º semestre de Psicologia na UFRGS Thais Espindola resume a experiência que tem na Clínica de Atendimento Psicológico da Universidade. Há dois anos ela encontra lá a oportunidade de tornar concreto o investimento social que o ensino superior público representa no Brasil. Thais conta que aprendeu a estar atenta a cada paciente que passa pelo espaço.

A Clínica é o que se conhece como serviço-escola, isto é, um espaço vinculado a uma instituição de ensino no qual os alunos, sob supervisão de professores, colocam em prática a teoria que aprenderam ao longo do curso, oferecendo assim um atendimento à população. Juntamente com possibilidades como estágios curriculares, bolsas de aperfeiçoamento e projetos de extensão, esses espaços de prática profissional integram o conjunto de diversas maneiras pelas quais alunos de graduação e pós-graduação desenvolvem sua capacitação para além do estudo em sala de aula. O órgão vinculado à Faculdade de Psicologia une ensino, pesquisa, extensão e o atendimento à comunidade interna e externa extrapolando o seu próprio nome: atua de forma interdisciplinar, com aproximadamente 200 colaboradores da Psicologia, Fonoaudiologia, Serviço Social e Medicina, sendo cerca de 50 destes estagiários dos cursos de Psicologia e Fonoaudiologia.

Serviços ofertados

Para Thais, o ambiente multidisciplinar e a troca de conhecimento entre os membros da equipe foram fatores essenciais para que ela optasse pelo estágio na clínica. “Hoje me sinto muito capaz de desenvolver minha profissão, ao mesmo tempo sei que a formação é contínua, pois aprendo todo dia com cada paciente e cada pessoa com que tenho contato”, acrescenta. Desde 2011, a oferta desse atendimento passou a ser obrigatória para os cursos de graduação em Psicologia no país, conforme as Diretrizes Curriculares Nacionais do Ministério da Educação, por meio do funcionamento de um serviço de atendimento à comunidade. Na UFRGS, porém, esse serviço já tem longa história: é prestado há quarenta anos no espaço que surgiu para atender apenas os alunos do Instituto de Psicologia (IP), como parte do Núcleo de Atendimento Psicológico ao Estudante. Dois anos após sua criação, em 1977, o espaço assumiu o formato que tem hoje: tornou-se um órgão auxiliar do Instituto e expandiu o atendimento para a comunidade, fazendo-se uma clínica-escola.

O trabalho na Clínica de Atendimento Psicológico é executado em duas etapas. O ingresso dos pacientes acontece por meio das entrevistas iniciais, que consistem em um ou mais encontros a fim de entender a demanda do atendimento. Posteriormente a essa etapa, a continuidade do tratamento é avaliada conforme as especificidades de cada caso, e o respectivo encaminhamento do paciente acontece de acordo com sua necessidade. Para alguns casos, essa demanda é resolvida durante o processo inicial das entrevistas, enquanto em outros pode ser indicado o tratamento na própria clínica ou, ainda, ser realizado o encaminhamento para outros locais de atendimento.

Sala para atendimento infantil na Clínica (Foto: Gustavo Diehl/Secom)

Confiança

Por indicação de sua prima, a pedagoga Elisa (nome fictício), de 52 anos, buscou o atendimento para tratar a depressão diagnosticada quando tinha 17 anos. Por falta de condições financeiras para arcar com um tratamento privado, Elisa procurou o atendimento inicialmente achando que era gratuito, mas decidiu seguir na clínica: o valor é mais favorável que o de uma consulta particular. Com uma média de 480 pacientes em tratamento continuado ao longo de cada ano, a Clínica consegue funcionar como uma alternativa ao SUS exatamente porque o valor de cada atendimento é decidido diretamente entre terapeuta e paciente, de uma forma que o pagamento seja possível dentro de cada realidade. Em um país como o Brasil, a ampliação desse atendimento é essencial, visto que, segundo a Organização Mundial de Saúde, é o país com maior número de diagnósticos de ansiedade no mundo e com o maior número de casos de depressão na América Latina.

Embora hoje não seja mais paciente da Clínica, Elisa conta que o atendimento trouxe apenas benefícios. No período do tratamento, ela conseguiu romper com um relacionamento que estava agravando sua depressão. “Meu terapeuta me questionava muito. Eu gosto quando o profissional questiona, instiga, nos faz falar. E ele me fazia falar, e era uma pessoa com quem eu tinha abertura para dizer o que eu quisesse. [A terapia] fez com que eu conseguisse ter forças para terminar o meu relacionamento, e isso significou muito para mim naquela época”, relata.

Para Daniel (nome fictício), de 22 anos, o custo do atendimento também foi um fator importante para a escolha de realizar o atendimento na Clínica. O estudante de Medicina ficou sabendo do serviço prestado pela Universidade após a indicação de alguns professores em sala de aula. Está lá desde agosto do ano passado. A decisão de buscar ajuda veio após Daniel se sentir ansioso e cansado pela faculdade e por outros problemas pessoais. Além do valor, foi decisiva a confiança nos profissionais que estão sendo formados pela Universidade. Assim como para Elisa, o atendimento foi essencial para o estudante, que conta ter uma vida mais saudável com a ajuda da terapia. “Eu estou resolvendo coisas desde a infância até a faculdade e as crises de jovens-adultos. Está sendo bom pra mim, eu estou conseguindo melhorar como pessoa”, conta. Ele, inclusive, define o atendimento como seu porto seguro: “Eu fico muito feliz. É um alívio saber que eu vou ter essa consulta na semana. Eu sei que vai ter essa pessoa lá que vai poder me auxiliar e eu vou poder aliviar esse estresse”, complementa. A confiança depositada pelos pacientes na atuação dos estudantes é, para a graduanda Thais, surpreendente. “Senti que era mais do que uma experiência de formação, era também de trabalho e que foi reconhecido”, sintetiza.

Ricardo Giacomoni, terapeuta na Clínica de Psicologia (Foto: Gustavo Diehl/Secom)

Ricardo Giacomoni, que já é formado em Psicologia pela UFRGS, ainda durante a graduação também buscou a Clínica para sua primeira experiência prática de atendimento. Encontrou um ambiente de troca de conhecimento e saberes compartilhados.
É por isso que atua lá até hoje, como extensionista, ao mesmo tempo em que atende em seu próprio consultório. Para o psicólogo, os espaços de supervisão e a análise conjunta dos casos são os fatores que o fazem manter o vínculo. “É um trabalho coletivo, então vai circular o que cada um tem como experiência desse momento. E isso não se dá só com aqueles que estão no mesmo estágio de sua formação”, diz. E completa: “A clínica é um espaço de diferentes momentos. Eu acho que esse elemento coletivo de poder fazer circular o que cada um recolhe e também o que devolve é muito importante”. Para ele, a prática no atendimento clínico não funciona como um processo único de aprendizado, mas de aprendizagem, que tem um impacto direto e indireto na comunidade atendida. “O sujeito que é escutado produz deslocamentos no seu discurso, por ser um sujeito político que, em certo sentido, circula pelo social. De alguma maneira isso também tem um efeito em relação àqueles com que ele convive”, analisa.

Atuação diferente

Apesar de ser o tipo de tratamento mais conhecido, o atendimento clínico não é a única opção para quem quer dar mais atenção à saúde mental. Segundo Cláudia Sampaio, psicóloga do Centro Interdisciplinar de Pesquisa e Atenção à Saúde da UFRGS (CIPAS), profissionais da área estão pensando cada vez mais em ações preventivas e coletivas, de modo a promover o bem-estar e a qualidade de vida da população. “A gente pode ter o individual, mas não só ele. Nem todo mundo vai fazer terapia por dez anos. Algumas vão, mas outras vão se beneficiar de outras formas de cuidado, de promoção de saúde, de atividade física, de meditação”, aponta. Esse é um dos papéis desempenhado pelo CIPAS, outro serviço-escola do Instituto de Psicologia. Criado há seis anos, é constituído por 13 programas e projetos de curta e média duração, tendo como foco a saúde não só de estudantes da Universidade, mas do público em geral — principalmente o de baixa renda. Algumas dessas iniciativas já existiam, mas foi com a incorporação dos cursos de Serviço Social e Fonoaudiologia ao Instituto que surgiu a ideia de aproximá-las e promover trabalhos interdisciplinares.

Há três anos, a estudante Juliana Cardoso, 26, iniciou seu estágio no Centro de Avaliação Psicológica (CAP), um dos serviços mais procurados dentro do CIPAS. Natural de Canoas, recém-formada, ela conta que essa experiência proporcionou mais do que o seu desenvolvimento como psicóloga. “Os programas de extensão possibilitam um trabalho direto com a comunidade.
É muito gratificante, porque concretizamos a ideia de levar o conhecimento adquirido dentro da área científica para fora da academia, muitas vezes para um público que não encontraria esses serviços na rede de saúde pública”, sintetiza.

Assim como Juliana, a estudante Nayhara Bessa, de 28 anos, também procurava um espaço onde pudesse trabalhar aliando a teoria e a prática que aprendia em sala de aula. Aluna do oitavo semestre do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), há um ano ela trabalha com orientação profissional em estágio dentro do CIPAS, atuando tanto no Serviço de Orientação Profissional (SOP) quanto no Núcleo de Apoio ao Estudante (NAE). Entusiasmada, ela conta que essa oportunidade mudou completamente sua carreira de vida. “Antes, eu me preocupava em me sentir preparada para fazer algo acontecer, e isso me dava a sensação de que nunca era suficientemente boa para começar. Logo, não praticava, não adquiria experiência. Hoje, me pergunto: o que posso fazer com o que tenho? Se não me sinto pronta para dar conta de algo sozinha, quem pode me ajudar? Aqui aprendi a me comunicar com mais assertividade, falar do que preciso e pedir ajuda”, relata.

Por ser um serviço-escola, a prioridade do CIPAS não é atender a um grande número de pacientes, mas sim congregar o atendimento ao público e a formação de profissionais. Cláudia Sampaio, servidora da UFRGS com atuação no NAE e no SOP, acredita que essa integração entre o acolhimento, o ensino e a pesquisa é vantajosa. “É uma retroalimentação. A gente gera perguntas de pesquisa a partir da prática, e o que se estuda retorna para o atendimento. Procuramos fazer um trabalho que atenda bem a população, mas que ao mesmo tempo sirva para a formação de qualidade dos nossos alunos”, afirma.

De modo geral, os projetos surgem a partir do interesse dos docentes, de acordo com seus respectivos temas de pesquisa. No entanto, frequentemente a própria rotina de trabalho revela novas necessidades. “Com o tempo, os programas vão gerando demandas próprias. O Centro de Avaliação Psicológica, por exemplo, começou a ver que tinha muita dificuldade com o manejo e a orientação dos pais das crianças atendidas. Em função disso, a gente abriu um outro estágio, de orientação a pais”, explica a psicóloga Denise Yates, uma das coordenadoras do CAP.

Nayhara relembra que, no início do estágio, sentia-se insegura quanto às técnicas que precisava aplicar ao atender alunos individualmente. “Mas pude contar com o apoio de profissionais muito competentes e humanos, que me ensinaram a qualificar minha escuta e me instruíram aos poucos a usar os conceitos teóricos de acordo com cada pessoa que atendia. Os estudantes universitários precisam de espaços seguros que lhes permitam treinar, errar e criar”, completa.

Reportagem especial. Texto produzido em parceria com Natalia Henkin para o Jornal da Universidade (UFRGS). Porto Alegre, março de 2019.

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