Escuta para todos

Terapeutas da Clínica de Atendimento Psicológico prestam atendimento a jovens que cumprem medida na Fase

Isabel Linck Gomes
Isabel Linck Gomes
4 min readJul 9, 2019

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Yumna Yussuf, extensionista da Clínica de Atendimento Psicológico da UFRGS (Foto: Rochele Zandavalli)

“Nosso trabalho é ir um pouco além, é escutar aquele sujeito como um outro sujeito. É como a gente vê a questão da droga: tem áreas que vão focar no tirar a droga; a gente está tentando ver o sujeito por trás desse sintoma.” Com brilho nos olhos, Yumna Yussuf conta sobre sua experiência como extensionista da Clínica de Atendimento Psicológico da UFRGS como quem narra o mais vívido sonho — talvez por estar, de fato, vivendo um. Psicóloga formada pela Universidade Politécnica de Maputo, a moçambicana encontrou no Brasil a oportunidade de se especializar em psicanálise, área pouco explorada em sua terra natal.

Seguindo os passos da irmã, também formada em Psicologia, aterrissou em Porto Alegre por indicação de uma professora gaúcha, que recomendou a Clínica como um local de referência em psicanálise. Lá, ingressou no Grupo de Trabalho (GT) A clínica dos usos de drogas e questões adolescentes motivada por uma curiosidade que carrega desde a adolescência. “Eu convivia com aquilo [uso de drogas] porque pessoas ao meu redor usavam; não tinha vontade de experimentar, mas tinha vontade de conhecer. Então, de alguma forma, eu me via uma observadora. E me perguntava sobre aquilo sem saber responder”, ela relata.

Em sua primeira visita a Porto Alegre, em 2015, Yumna logo se identificou com o GT. Além da temática, a realidade do tráfico também lhe despertava interesse. No ano seguinte, voltou para iniciar sua especialização na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e descobriu a parceria entre a Clínica e a Fundação de Atendimento Sócio-Educativo do Rio Grande do Sul (Fase). “Sempre quis trabalhar com isso, era algo que eu até pedia no grupo, instigava, porque era realmente uma vontade minha”, recorda.

Atualmente, Yumna vai à Fase todas as quintas-feiras, onde costuma atender até dois jovens. Seu caso é exceção, dado que o habitual é que os atendimentos sejam feitos na Clínica. No entanto, isso nem sempre é possível, pois a liberdade de circulação pela cidade varia conforme o caso de cada paciente. A preferência por um atendimento fora da Fase é uma tentativa de desfazer a ideia de que o tratamento é vinculado à medida punitiva e à própria instituição, para que o atendido se sinta mais confortável. Ainda assim, a mera possibilidade de se conversar com alguém de fora é bem-vista pelos adolescentes. “A terapia faz eu me sentir mais tranquilo. Aqui tem o técnico para conversar também, mas é bom o atendimento da rua [da Clínica]. Tem mais liberdade lá, eu posso falar qualquer coisa que eu sei que não vai sair dali”, conta Bruno [nome fictício], que há 6 anos é atendido pela Clínica.

Embora a Fase disponha de uma equipe de psicólogos, os propósitos são diferentes. “A escuta [da Fase] é feita no sentido de propor uma reflexão sobre a relação com a situação do menino, com o local onde ele se encontra e as pessoas com quem convive aqui dentro. É um controle institucional para saber se o jovem vai bem para fora”, explica Tais Maidana, psicóloga da Comunidade Sócio-Educativa da Fase (CSE), que atesta a importância do atendimento prestado pela Clínica. “Para o menino atendido, sinto que é um respiro. Eles vêm de realidades muito complicadas, são resistentes. Falam muito, mas não sabem falar sobre os sentimentos. Possuem relações de confiança muito quebradas, então conseguir colocar pessoas em volta deles para uma escuta séria, atenta, é muito importante. E fica também uma referência, eles sabem que existe esse espaço lá fora”, acrescenta. Para Yumna, trata-se de ver além do delito e escutar o sofrimento do outro. “Se tu te permites fazer isso, realmente podem surgir muitos efeitos. A gente vê que às vezes um, dois dias de escuta de tanto sofrimento já conseguem fazer uma função de descarga que alivia muito”, conclui.

Geralmente, a partir do pedido do jovem, a equipe técnica analisa a viabilidade de acolhimento da Clínica. No caso de Bruno, quem sugeriu que ele iniciasse a terapia foi sua mãe. “Eu era muito agitado, aí queriam ver se, conversando com alguém, eu podia me acalmar. E adiantou, fui ficando mais sereno”, relembra. Além disso, ele acredita que suas relações familiares também melhoraram. “O atendimento me ajudou a me abrir mais. Antes, o que eu pensava eu queria guardar para mim. Depois do atendimento, comecei a conversar mais com a minha família.”

O serviço é positivo também para quem está do outro lado, realizando os atendimentos. A moçambicana confessa que o início da experiência foi desafiador, mas que exercitar sua escuta e seu olhar de terapeuta foi um grande aprendizado. “É uma realidade muito difícil, de muito sofrimento. A morte está sempre ali no discurso, o matar e morrer; são histórias realmente muito pesadas de vida desses adolescentes. Então é uma escuta bem difícil, mas é muito legal exatamente por causa disso […] Tu precisas te desvincular desse olhar da sociedade, porque estás ali como terapeuta.”

Matéria online. Texto produzido em parceria com Natalia Henkin para o site do Jornal da Universidade (UFRGS). Porto Alegre, março de 2019.

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