O pedido de socorro por trás do silêncio

Isabel Linck Gomes
Isabel Linck Gomes
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4 min readJun 9, 2018

“O que acontece na faculdade fica na faculdade”. É essa máxima clichê, dita por um professor dando boas-vindas aos calouros, que dá início a The Hunting Ground, metaforizando perfeitamente o que o documentário denuncia: os altos índices de estupro nas universidades dos Estados Unidos, os quais são ignorados ou acobertados pelas instituições, que optam por omitir tais crimes em nome de sua reputação e, consequentemente, do lucro.

O documentário de 2015 é escrito e dirigido por Kirby Dick e tem como fio condutor da narrativa a história de Annie E. Clark e Andrea Pino, jovens que foram estupradas enquanto eram estudantes da Universidade da Carolina do Norte e que, após não terem recebido o suporte esperado da instituição, reagiram por meio de ativismo a fim de pressionar as universidades a exporem essa realidade omitida, penalizarem os autores dos crimes e tomarem medidas que previnam qualquer violência sexual futura. Os relatos de Annie e Andrea logo se misturam numa massa de dezenas de rostos e vozes de jovens universitárias relatando as agressões sexuais das quais foram vítimas, evidenciando que esses casos supostamente isolados, na verdade, são comuns, e totalizam uma realidade cruel.

O filme traz estatísticas chocantes sobre violência sexual no ambiente acadêmico, como o índice que afirma que 16% das mulheres sofrem abuso na faculdade e, dentre elas, 88% decidem não prestar queixa. Qual seria a razão desse silêncio que, sendo tão intenso, é paradoxalmente gritante? Bastam poucos minutos de relatos para encontrarmos a resposta: ao contatar a universidade em busca de justiça — ou simplesmente amparo psicológico — , as vítimas se deparam com omissão e descaso, frutos de uma perspectiva mercadológica das instituições. As universidades nos Estados Unidos, em sua grande parte privadas, dependem diretamente de estratégias publicitárias para manter sua reputação, evitando, portanto, que os casos de estupro sejam investigados, já que isso não só traria reconhecimento público aos casos, como também geraria uma imagem negativa sobre a universidade. Nenhuma instituição de ensino quer ter seu nome vinculado à palavra “estupro”. É mais conveniente, portanto, silenciar as vítimas, do que ajudá-las.

A denúncia do documentário enfatiza que esse problema se potencializa com as fraternidades e os esportes. As fraternidades, tradicionalmente associadas às universidades nos Estados Unidos e populares pelas festas e celebrações que promovem, são ambientes que já se tornaram conhecidos pelos altos índices de estupro, porém, sendo um dos pilares financeiros das universidades por meio de doações e por disponibilizarem parte das moradias estudantis, são acobertadas. Os esportes, por sua vez, são um dos principais fatores para os jovens escolherem a universidade a qual pretendem ingressar, assim, em casos que envolvam atletas, os esforços da universidade para encobrir o crime são ainda maiores. É o caso mostrado no documentário de Jameis Winston, que estuprou uma menina na universidade, e não só segue impune, como hoje é um jogador de sucesso que conta com uma legião de fãs.

Kirby Dick aborda diferentes pontos sobre a mesma questão, conseguindo mostrar durante o longa como a violência sexual é muito maior — e mais preocupante — que apenas o ato em si. Denunciando a impunidade dos agressores, paralelamente é abordada a vida da vítima após o estupro, que frequentemente é obrigada a conviver com seu estuprador. Depressão e ansiedade são apenas dois de diversos transtornos que podem afetar a vida dessas mulheres, e que, em alguns casos, tem como consequência até o suicídio, como a história lembrada no filme de Lizzy Seeberg, que se suicidou em 2014 após ter sido estuprada e, ao tentar prestar queixa, foi ameaçada pelo seu agressor. Além disso, quando as vítimas conseguem realizar a denúncia, correm o risco de se tornarem vítimas também de cyberbullying, sofrendo ameaças por “destruírem a vida” dos agressores. Eles, por sua vez, são pessoas que assediam, abusam e estupram, mas que seguem frequentando livremente aulas, jogos e festas, enquanto as mulheres agredidas carregam o peso do medo, da injustiça e ainda da culpa, pela cultura do estupro que insiste em culpabilizar a vítima.

The Hunting Ground fez jus ao conjunto de filmes dirigidos por Kirby Dick, que já é conhecido por produzir narrativas em tons de denúncia, abordando temáticas necessárias de serem discutidas na sociedade. O assunto do documentário dialoga muito com Guerra Invisível (2012), um dos principais trabalhos de sua carreira que aborda a onda de estupros dentro do exército americano.

Embalados por Til it Happens to You, canção de Lady Gaga escrita juntamente com Diane Warren e que em 2016 indicou o documentário ao Oscar de Melhor Canção Original, os depoimentos são mesclados com imagens que conseguem cumprir muito bem a função de ilustrar a vida universitária, mostrando tanto a vida acadêmica, quanto a vida noturna dos estudantes. Com testemunhas em primeira pessoa, estatísticas e participação de especialistas, o documentário ganha credibilidade e consegue alcançar com êxito o objetivo de denunciar uma realidade que por anos foi varrida para debaixo do tapete.

Mesmo com cenas do que parece ser um “final feliz”, mostrando conquistas do ativismo de Annie e Andrea, The Hunting Ground encerra numa triste circularidade que nos relembra o quanto ainda precisa ser feito para que isso se torne apenas uma triste lembrança. Essa realidade de descaso e impunidade é apenas reflexo de uma sociedade onde a violência contra a mulher ainda é ignorada por muitos, e a universidade, como um ambiente de grande importância para reflexão e desconstrução, deve ser o momento crucial para que isso seja mudado, pois, como é citado por um professor em uma das cenas de abertura do filme, os graduandos de hoje são a nova geração de líderes em que todos nós confiaremos no futuro.

Resenha crítica. Trabalho produzido para a disciplina de Jornalismo Opinativo, ministrada pelo professor Basílio Sartor. Porto Alegre, junho de 2018.

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