Sob as marquises da cidade

Uma análise de duas propostas apresentadas pela prefeitura no Plano Municipal de Superação da Situação de Rua em paralelo à situação dos moradores de rua de Porto Alegre

Isabel Linck Gomes
Isabel Linck Gomes
6 min readNov 22, 2018

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Foto: Isabel Gomes/Arquivo

“Nem casa sem gente. Nem gente sem casa”. Essa é a frase que, junto de outras pichações, estampa a varanda de um apartamento no bairro Bom Fim, o nono bairro com maior concentração de moradores de rua dentre os 42 listados em Porto Alegre. É o que aponta o Cadastro e Mundo da População Adulta em Situação de Rua de Porto Alegre realizado em 2016 pela Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) em parceria com a UFRGS, que revelou que aproximadamente 2115 pessoas na capital gaúcha têm os espaços públicos como suas “casas”, um crescimento de 57% em relação à 2011, — ano de publicação do Cadastro anterior em relação a este — quando as ruas da cidade abrigavam cerca de 1347 pessoas. O crescimento é claro para quem circula pelas vias de Porto Alegre, um fato que, inclusive, se reforça na pesquisa: um quarto dos moradores de rua entrevistados afirmou estar há menos de um ano vivendo em espaços públicos da cidade. A região central é a área que abriga a maior concentração de moradores de rua, como ilustra o gráfico abaixo enumerando os 15 bairros de Porto Alegre com maior número de pessoas em situação de rua:

As políticas públicas convencionais não têm se mostrado suficientes para enfrentar essa problemática. Em Porto Alegre, existem hoje três albergues municipais destinados à população que se encontra em situação de rua, que oferecem cuidados de higiene e alimentação, bem como encaminhamentos à rede de saúde, quando necessário. Essa alternativa, no entanto, é utilizada por apenas 23,6 % de quem a necessita, sendo as calçadas sob as marquises a principal alternativa de escolha como dormitório. O principal motivo da decisão de não ir aos abrigos se deve à falta de liberdade que os moradores de rua sentem nesses espaços, devido às normas estabelecidas. A segunda justificativa relatada é por não gostarem da forma de tratamento dos responsáveis pelo acolhimento, relatando casos de hostilidade, como ilustra o gráfico abaixo com as razões para que os abrigos não sejam a primeira opção de escolha de dormitório para os moradores de rua:

Como resposta à essa situação, em maio deste ano a Prefeitura de Porto Alegre apresentou o Plano Municipal de Superação da Situação de Rua, elaborado pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS) e Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e Esporte (SMDSE). Composto por seis estratégias — qualificação da abordagem, programa Moradia Primeiro, ampliação da rede de Saúde Mental, aumento das ofertas de oportunidades, revitalização do espaço urbano e monitoramento da assistência — o programa tem como proposta fazer uso de medidas alternativas às políticas públicas tradicionais, numa tentativa de tratar e reduzir o número da população de rua. Segundo a prefeitura, o Plano foi baseado em estratégias usadas no Canadá, Estados Unidos, Finlândia, Reino Unido e Portugal. Houve grande repercussão nas mídias sociais quando divulgado, por deixar questionamentos de como as iniciativas funcionariam na realidade dos moradores de rua de Porto Alegre.

Dentre as estratégias, destacou-se o programa Moradia Primeiro. A ideia consiste no cadastro, por parte dos proprietários, de imóveis desocupados, os quais a Prefeitura aluga por um valor de R$ 500,00 para serem resididos pelos moradores de rua. A proposta parece atender as perspectivas de quem mora na rua, visto que apenas 5% delas estão ali por opção, bem como 60% dessas pessoas citaram “a saída da rua com a conquista de uma casa” quando questionados se tinham algum projeto para realizar futuramente.

O iniciativa propõe que as famílias contempladas recebam visitas periódicas de equipes da prefeitura para acompanhar a adaptação. Há perspectiva de que, ainda esse ano, o Moradia Primeiro dê um lar à 70 pessoas. As projeções, entretanto, esbarram na disponibilidade de imóveis. Em entrevista ao portal de notícias do jornalista Felipe Vieira, a coordenadora do programa na Secretaria Municipal da Saúde, Silvia Mendonça, informou que até a metade de outubro 43 imóveis estavam cadastrados, dos quais sete foram locados, 22 não estavam aptos e 11 ainda estavam em processo de vistoria.

Retornos

A segunda medida que chamou a atenção nas redes foi o acordo de cooperação com a Federação das Empresas de Transportes Rodoviários do Estado do RS (Fetergs) e a Associação Rio-Grandense de Transporte Intermunicipal. A parceria tem como objetivo oferecer 150 passagens de ônibus gratuitas por ano para que moradores de rua retornem às cidades de origem.

O cadastro aponta que 50,7% da população de rua é natural de outras cidades que não Porto Alegre, a qual se dividem em oriundos do interior do Estado (32%), da região metropolitana (9,8%), de outros estados (6,9%) e de outros países (1,4%). O acordo fornecerá passagens de ônibus intermunicipais e interestaduais, abrangendo, portanto, quase metade das pessoas que hoje vivem nas ruas da cidade.

Considerando a projeção de serem dadas 150 passagens por ano, e supondo que todos os moradores de rua desejariam voltar para suas cidades, levaria aproximadamente sete anos para que todos retornassem às respectivas terras natais. A estimativa, entretanto, é frágil pois colide com o fato de que apenas conseguirão as passagens aqueles que a assistência social conseguir realizar o contato prévio com as famílias que residem nas cidades pretendidas a retorno.

E se a cidade se adaptasse?

Em contraponto às medidas adotadas por Nelson Marchezan que pretendem tirar os moradores da rua a curto prazo, existem projetos desenvolvidos no exterior que buscam oferecer alternativas para tornar a situação em vias públicas menos pior enquanto os efeitos das políticas públicas de longo prazo não surtem efeitos ou, até mesmo, para aqueles que vivem na rua por opção. Banhos itinerantes, banheiros públicos abertos durante o dia todo, bebedouros espalhados pela cidade e restaurantes populares são algumas dessas medidas.

Na capital gaúcha, existe o projeto voluntário Banho Solidário, que consiste em um banheiro itinerante que atende cerca de 30 pessoas por semana. Há também o Restaurante Popular, administrado pela Coordenadoria de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável (Cosans), da Secretaria Municipal de Direitos Humanos, que oferece almoço por R$ 1,00 a pessoas em situação de extrema vulnerabilidade social. O Restaurante, entretanto, não é um serviço exclusivo aos moradores de rua e, por isso, lota diariamente, o que dificulta a oferta de refeições a toda a população de rua. Isso se soma ao fato de existir apenas uma unidade desse serviço na cidade, dificultando o acesso para quem não vive nas proximidades do Restaurante, localizado próximo à Rodoviária. Segundo o cadastro, 22% dos moradores de rua costumam almoçar no Restaurante Popular, enquanto a doação espontânea de alimentos pelas ruas é a principal fonte de refeições, com 25%.

Quanto aos banheiros públicos, a situação pode ser considerada positiva. Segundo o Departamento Municipal de Limpeza Urbana, existem hoje 40 deles na cidade, sendo que apenas três estão fechados para manutenção. A distribuição condiz com a concentração dos moradores de rua em cada região: 19 banheiros públicos são na região Central da cidade, que abriga 80% dessa população.

Os bebedouros, por outro lado, têm condições bastante desfavoráveis. Conforme o mapeamento da Secretaria Municipal do Meio Ambiente e da Sustentabilidade, existem nos parque de Porto Alegre 30 bebedouros, sendo que pelo menos 11 desses não estão funcionando ou sequer têm água. A situação preocupa, principalmente ao se aproximar o verão, quando a média das temperaturas em Porto Alegre é de 30°C.

Mas, afinal, quem são eles?

A capital gaúcha perante o resto do país

Uma pesquisa publicada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) apontou que o Brasil tem aproximadamente 101.854 pessoas vivendo nas ruas, sendo que a região Sul do país soma 16.021 mil pessoas nessa situação, 15,73% do total de habitantes vivendo na rua em todo o país.

O número de moradores de rua de Porto Alegre representa 2,08% em relação à estimativa da população em situação de rua em âmbito nacional e 13,2% em relação à região Sul.

Reportagem com dados. Trabalho realizado para a disciplina de Ciberjornalismo II, ministrada pelo professor Marcelo Trasel. Porto Alegre, novembro de 2018.

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