Uma aula de resistência

A realidade dos cursos pré-vestibulares que lutam pela democratização do ensino superior a fim de tornar as universidades mais heterogêneas.

Isabel Linck Gomes
Isabel Linck Gomes
6 min readJun 9, 2018

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O padrão de universidades federais com altos índices de estudantes brancos, de classe média-alta e provenientes de escolas particulares felizmente vem se transformando há alguns anos, segundo os dados divulgados pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). Entre 2010 e 2016, o número de estudantes vindos de famílias com renda per capita de até 1,5 salário mínimo subiu de 44% para 66,19%, enquanto o percentual de estudantes negros e de pardos, de 2003 para 2014, passou de 5,9% para 9,8% e 28,3% para 37,7%, respectivamente.

Essa mudança se deve às políticas de ação afirmativa, que se popularizaram no Brasil a partir de 2004, bem como às práticas tais quais os cursos pré-vestibulares populares (também chamados de comunitários), que tem o propósito de democratizar o acesso ao ensino superior. Esses cursos ajudam grupos socialmente desfavorecidos no ingresso à universidade oferecendo preparo para o vestibular por preços menores, visto que nem todos podem arcar com os valores cobrados pelos cursos privados: a média de preço anual é R$ 7.000, enquanto cursos específicos para medicina custam até R$ 29.000.

Entretanto, o que difere a realidade de um cursinho particular e de um cursinho comunitário vai muito além de valores: enquanto o primeiro é uma iniciativa privada, o cursinho popular costuma ser uma organização sem fins lucrativos, que funciona de forma horizontal. A capital gaúcha conta com cerca de dez cursinhos populares, em que o corpo docente é totalmente composto por voluntários, e os pré-vestibulandos são alunos vindos de colégios públicos, com perfis que historicamente estiveram afastados do meio acadêmico: negros ou pardos, estudantes de baixa renda, imigrantes, transgêneros, etc.

Sede própria e equipe de limpeza são alguns dos luxos que os pré-vestibulares populares não dispõem. Os cursos que não têm a sorte de ter um espaço cedido por alguma instituição pública, como é o caso do Resgate Popular, que tem salas disponibilizadas pela UFRGS, e do Pré-Vestibular Dandara dos Palmares, que acontece no Instituto Federal do RS, precisam arcar com os custos de aluguel e manutenção do espaço. Já as tarefas de limpeza e organização, a fim de evitar mais gastos, ficam por conta dos próprios alunos e professores, o que consequentemente expande o senso de coletividade e horizontalidade nos cursos.

Sala de aula do curso pré-vestibular popular ONGEP, que tem sua sede em um apartamento locado no Centro Histórico de Porto Alegre (Foto: Isabel Gomes)
Avisos colados nos espaços da ONGEP sinalizam que a limpeza e a organização do cursinho são responsabilidade de todos que ocupam o local.

Por meio de entrevistas, os cursinhos comunitários selecionam os alunos que mais precisam dessa ajuda, ou seja, quem socialmente está mais distante do ensino superior. O Resgate Popular, por exemplo, considerado um cursinho comunitário tradicional de Porto Alegre por existir há 17 anos, usa um processo seletivo em que a primeira etapa do processo é a socioeconômica, dando prioridade aos alunos com menores rendas. Em segundo lugar, é levada em consideração a etnia do aluno e, por último, é analisado o seu histórico de vida, em caso de alguma dificuldade específica.

Gaelfie Ngouaka faz parte do grupo de estudantes recentemente aprovados no processo seletivo para cursar as turmas de intensivo do Resgate. A aluna de 19 anos deixou a República do Congo para vir ao Brasil com o propósito de morar com seu tio, focada no objetivo de cursar Medicina. Sem condições financeiras para arcar com um pré-vestibular privado e sem nunca ter tido contato com qualquer prova do vestibular da UFRGS, Gaelfie encontrou no Resgate todo o auxílio necessário: “Todo mundo é bem legal, eles recebem todos muito bem. Quando precisei fazer a inscrição no vestibular, meu colega me ajudou em tudo. As pessoas se apoiam, não tem concorrência ou rivalidade, a gente se ajuda pra que todo mundo passe”, conta a estudante.

A formação de cidadania em sala de aula

Talvez o maior diferencial do ensino num pré-vestibular popular seja a preocupação em formar alunos com pensamentos críticos e consciência de cidadania. Bernardo de Carli, professor de história e coordenador do Resgate Popular e do Pré-Vestibular Popular do PT, explica que os cursos procuram não desvincular a educação da formação de cidadania, sempre mesclando esse debate com o conteúdo programático dos vestibulares. Bernardo afirma que há uma tentativa de aplicar isso em todas as matérias, seja nos textos escolhidos pelas professoras de linguagens, nos temas debatidos em redação, ou até mesmo nos exemplos usados em matemática. “Já teve aula aqui no curso [Resgate] em que o professor de matemática aplicou o conteúdo num cálculo sobre as tarifas de ônibus”, exemplificou.

Citando Paulo Freire — o sonho do oprimido é virar opressor — Bernardo argumenta que não é suficiente apenas colocar o aluno na universidade: “A gente quer que eles entrem lá com um pensamento crítico, com uma consciência social, para ser um projeto transformador, porque é isso que nos difere de um pré-vestibular privado”.

É o que vivenciou Matheus Rangel, ex-aluno da Organização Não Governamental Para Estudantes Populares (ONGEP): “Logo que eu entrei, vi que o cursinho popular tem uma cara totalmente diferente de outros cursinhos. Eu costumo dizer que não é um cursinho preparatório para o vestibular, mas sim para a vida. O conteúdo vai além da habitual que vemos na escola, pois tem muitas aulas sobre política, sobre feminismo, sobre preconceitos, então não eram aulas necessariamente conteudistas, eram aulas que nos faziam pensar”.

O aprender ensinando

Elisa Vigna, 29 anos, é professora de português e de redação há dez anos e desde 2008 dá aulas de português na ONGEP. Elisa decidiu dar aula em cursinhos populares pois viu ali uma boa oportunidade para sua primeira experiência em sala de aula como professora. Para ela, os cursinhos populares são importantes para a formação dos profissionais, pois os permitem ensinar e aprender ao mesmo tempo: “É uma via de duas mãos: oferecem a possibilidade de formação do aluno-professor”.

Sendo professora de curso popular e privado, Elisa destaca algumas diferenças na abordagem dos conteúdos em cada sala de aula, de acordo com as experiências de cada realidade. “No cursinho regular, é importante que os alunos e as alunas entendam seu lugar de privilégio na sociedade. São pessoas que têm ‘vez’ na sociedade, mas ainda não tem ‘voz’. No cursinho popular, me parece que a ideia é o contrário: os alunos e alunas chegam com a sua ‘voz’, que precisa ser ouvida, pois ainda lhes falta a ‘vez’, a oportunidade de ser escutado.”

Para ela, dar aula a pessoas com realidades contrastantes a sua é uma oportunidade de repensar e desconstruir paradigmas. “Dar aula muda a vida da gente o tempo todo, independentemente de onde se dá. Basta que estejamos abertos a ouvir, a aprender, a desconstruir conceitos e ideias previamente construídos”, relata Elisa.

Quando a batalha é vencida

Matheus Rangel foi um dos quase 40 alunos da ONGEP aprovados em 2017. Rangel, como é popularmente conhecido entre seus amigos, estudou por dois anos até conseguir ver seu nome no listão. A batalha do estudante foi muito além da sala de aula: em 2016, sua mãe ficou desempregada, e a família passou por problemas financeiros. O dinheiro era suficiente apenas para a passagem do ônibus, tendo que deixar de almoçar muitas vezes para que pudesse chegar até o pré-vestibular. Este ano, Rangel foi aprovado em Publicidade e Propaganda na UFRGS e, mesmo fora do cursinho há quase um ano, o laço ainda permanece: “Eu ainda tenho muito contato com o curso e com meus ex-colegas. Volta e meia a gente se encontra e sempre sentimos aquela energia de ‘nós conseguimos! O pessoal popular tá dentro da UFRGS!’. E isso é extremamente gratificante”.

Grande reportagem. Trabalho realizado para disciplina Fundamentos da Reportagem, ministrada pela professora Thais Furtado. Porto Alegre, novembro de 2017.

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