azia

Gustavo Roças
isso não é um diário
3 min readSep 19, 2017

Eu tava andando feito louco pelos caminhos tortuosos e entrando em curvas sem sáida com pressa, era um daqueles sonhos em que você tenta correr mas não consegue. Era eu andando feito louco pelas curvas sem saída. Passei a mão no rosto procurando me acalmar enquanto respirava fundo, acordei finalmente no meio da madrugada.

— Você tá com quantos anos mesmo, Gu?
— 23.
— E de idade mental?
— 82 e contando. Já chegando na época da senilidade.

Lembrei do encontro com a amiga que, depois de alguns meses distante, dividia a batata do combo de hamburger comigo numa noite de quinta-feira mais fria do que eu gostaria que fosse. Em minha defesa, eu que tinha levantado para pegar o ketchup.

— Besta. — riu e limpou o dedo engordurado num guardanapo.

Ficamos em silêncio por um tempo. O tipo de silêncio que pessoas que se conhecem há bastante tempo lidam bem. Podia ser o frio, a batata deliciosa ou o assunto interrompido abruptamente por uma de minhas piadas sem graça. Acontecia o tempo todo.
Acontece até hoje. Percebi e, me sentindo culpado, continuei:

— Por que a pergunta repentina? Quantos anos anos você acha que minha mente tem?
— Não sei. Te olhei agora e me veio muito mais que isso.
— Muito mais quanto?
— Uns 30.
— Uns 30 a mais? — rimos.
— Tá com um ar mais maduro. Você tá diferente, né?
— To. Mas também não sei por que. Quer mais ketchup?
— Maionese, por favor.

Levantei martelando as palavras na minha cabeça com a mesma força que apertava a válvula que liberava maionese num copinho plástico.

Enquanto eu deitava de barriga pra cima fitando o escuro completo após o sonho que não foi agradável mas que também não sei se podia ser enquadrado na categoria pesadelo repassei a conversa com a amiga sem conseguir dormir. Podia ser o peso que o hamburger fazia na minha barriga, ou a consciência de que “você tá diferente” sem nem saber por que começava a me incomodar. Fui em direção ao banheiro pra jogar uma água gelada no rosto e caminhar para ajudar na digestão — do hamburger e do fluxo intenso de pensamentos. Não que eu fosse andar tanto assim, o banheiro é do lado da cama, mas não me permiti refletir sobre isso durante a madrugada.

Espero que compreenda.

— Diferente, como? — coloquei o copinho plástico com maionese em cima da mesa enquanto me sentava.
— Sei lá, olhei de repente e achei. Mas tá tudo bem.
— Claro que tá. É só por curiosidade. Você não é a primeira pessoa que me fala isso.
— E quem mais tem falado?
— Uma galera.
— Entendi.
— Para de me olhar desse jeito.
— Não to olhando de jeito nenhum. — riu — Não vai comer mais?
— Não, to pesado já. Se comer mais não vou conseguir dormir.

Esse era o labirinto, não é? Não que eu entenda muito de interpretar sonhos, na verdade tenho de controlar o esforço para nem tentar porque não preciso de mais uma coisa para administrar. Mas me pareceu claro quando voltei do banheiro e continuei fitando o escuro tentando levar a mente ainda torpe de sono a caminhos que fizessem sentido. Caminhos tortuosos com curvas sem saída.
Não consegui, nem agora que já se passaram muitos dias.
O hamburger já foi digerido, pelo menos, a azia agora é outra — mais profunda e psicossomática.

Talvez seja a senilidade dos 82.

- Gustavo Roças

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