sofrendo em bordô

Gustavo Roças
isso não é um diário
2 min readDec 21, 2017

eu não sei fingir que não estou sentindo o que estou sentindo. é um presente do mesmo peso que uma maldição, mas o fato é que está tudo impresso na minha cara num preto retinto e em letras garrafais: a tristeza ou a felicidade, a indiferença ou a paixão, o prazer ou o sofrimento. eu diria que isso já serviu como rasteira algumas muitas vezes, nos derradeiros fins ou nos excitantes começos, minha capacidade de não esconder nada esteve sempre lá e estava lá quando uma amiga passou como quem passa um documento confidencial numa mesa de um cenário clichê de filme de máfia, deslizando sobre a superfície metafórica uma música da maria rita: “ouve essa música”, me disse e não disse mais nada.

eu nunca fui exatamente o tipo de pessoa que usava músicas como remédio e percebi o quanto tempo perdi quando me senti aliviado como se recebesse uma dose de morfina num pós operatório.
a voz de maria rita me cantava em cada verso e de repente as coisas me fizeram sentido, ao passo que a morfina ia fazendo efeito pude me enxergar em terceira pessoa “cutucando, relembrando, reabrindo a mesma velha ferida”. e todo esse processo com as músicas e as conversas derivadas sobre elas, com a mesma amiga, com outra ou comigo mesmo, serviram como um apoio importante no meu próprio processo de cicatrização.
a cicatriz ainda coça, não vou mentir. mas já decidi não falar mais disso.

o que vou falar a respeito é a ideia que surgiu logo em seguida, espontaneamente como as ideias boas geralmente surgem: montar uma playlist das músicas que embalaram nossas fossas, nos lembrando o quanto esse processo é ou foi importante para nós. mas como? e como fazê-lo sem perder o bom humor — já que esse é o nosso patrimônio imaterial mais importante. parte integrante, marca de nascença.

“vamos sofrer chiques!” “sofrer com um copo de conhaque e um charuto nas mãos.” “envoltos em casacos de tafetá.” “num cenário amadeirado, marrom.” “já sei, em frente à lareira.”
“em bordô.”

sofrendo em bordô. “anota que esse nome é bom e é seu.” ela disse e eu anotei.
anotei e depois virou playlist: chique, amadeirada, em frente à lareira.
numa fotografia de cores quentes.

ela é colaborativa, a playlist, assim como o sofrimento. colaborativo: cada um traz o seu e a gente cicatriza todo mundo junto.
qual música te leva até esse lugar? de aprendizado, autoconhecimento, choro, reflexão e, o mais importante, tudo em bordô.
você pode vir e sofrer com a gente. e se reerguer, também.
depois, — tal qual marisa —
mais chique que nunca.

-Gustavo Roças;

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