está passando o carro do sonho

Mayara Blasi
Isso Não é um Jogo
4 min readSep 20, 2023
Francesca Woodman

acordo de um sonho claro até as falas
meu suor, a realidade em dúvida eu
não sei se levanto e confiro
era meu prédio
não era meu prédio
tenho certeza era meu prédio que desabava

eu descia as escadas largas do sonho
na contramão das pessoas que chegavam do trabalho
com filhos sem filhos
— amarra o cadarço pra gente subir
com cachorros sacolas de mercado
chateações meios sorrisos lembro que
eu disse algumas vezes
do sexto andar até lá embaixo repeti
— tem algo de muito estranho vizinho vizinha
caíram azulejos no andar todo e se vocês repararem
muita conversa, alguns até riam
— amarra o cadarço, Nina

(se repararem bem o prédio parece tremer um pouco)

eles não repararam, não me notaram
seguiram subindo pras suas jantas séries
conversas inaudíveis roupas no varal
pra tomar banho colocar as crianças pra dormir
subiam subiam subiam
como se o prédio tivesse vinte andares
como se não estivessem cansados de subir escadas
subir e descer as crianças e os cachorros do colo

da minha parte não gritei “é uma emergência”
não sei quais vizinhos participaram do treinamento com os bombeiros
nem se adiantaria, sem fogo
não gritei
tive essa visão e mesmo assim não quis atrapalhar os vizinhos
suas roupas de trabalho ginástica roupas roupas
roupas que não escolheriam como a última
avisei sem gritar ou tentei gritar

os vizinhos subindo pra cumprir seus rituais eu vi
a desgraça
antes de acontecer
e continuei descendo
descia enquanto eles chegavam da rua e subiam
as escadas largas não eram bem deste prédio mas era este o prédio eu
passei pela portaria parei na calçada olhei pra cima
— não paguei o condomínio este mês
avisei a vizinha que ia entrando, os azulejos
uma possível desgraça, um talvez, uma desgraça na certa
e ela de volta que eu não me preocupasse:
— só se constroem prédios com engenheiros e licenças da prefeitura
muitas licenças

ela ia subindo mas pensando bem precisava passar na padaria
queria comer um hambúrguer a noite, faltou o pão
se eu não queria ir junto
eu fui pra não assistir o prédio desabar

o prédio desabou enquanto a gente tava na padaria
a três quadras dali
ouvimos o barulho e vimos uma grande nuvem de poeira
a nuvem de poeira não tinha no sonho, mas eu já vi na tv
e pensei no seu Paulo do 504
ele caminhando em volta da quadra
pensei no seu Jaime, no neto dele
tomara não estivesse em casa, o neto, um a menos
e a Dirce que passa tanto tempo sentada porque tá doente
ia morrer sem chance
(se a dor de ser esmagado é lenta)
os outros também
o Floquinho e a Brisa, seus latidos
pensei vizinho a vizinho os rostos que passaram por mim na escada enquanto eu descia

eu deveria ter sido mais enfática mais vizinha
às vezes esqueço que posso emprestar açúcar
cada um tão cada um
até na chata da síndica eu pensei, coitada
morrer soterrada
um a um
o guri do sétimo a vizinha sempre bem vestida aquele desgraçado que fuma [às seis da manhã e também pensei
que que adianta agora?
vai fritar onde os hambúrgueres?
discutir qual relação?
guardar onde as tralhas?

eu ainda salvei os documentos, meu caderno de cima da mesa
morreram minhas anotações no livro do Victor
de que adianta?
o pior é acordar de madrugada e não saber se tá respirando
se levanta, confere os azulejos da parede
se desce as escadas pra avisar
não adianta
são duas horas da manhã e os vizinhos as vizinhas seus bichos e plantas cadernos e crianças estão dormindo ou tentando dormir
e mesmo que alguém ouça um azulejo explodindo
não vai ver o prédio caindo

o prédio caiu no meu sonho
eu deveria avisar
separar o que mais importa além dos documentos e do caderno olha
o bebê tá dormindo tão bem
que bom, no sonho ele não existia
avisar os vizinhos mais salvar o bebê não ia dar certo
com custo dá pra dormir de novo
e amanhã ficar obsessiva com essa visão
foi apenas um sonho foi apenas um sonho foi apenas

desde então verifico os azulejos diariamente
ainda ontem encostei o ouvido em diferentes paredes do apartamento
e do hall de entrada
até no segundo andar fiz isso
(lembro do sonho o espírito santo na porta da dona Cleide)
quem enxerga o futuro também ouve o futuro eu sonhei
o prédio caindo
e agora finjo interpretar
não vou levar pra análise
só me arrependo de ter desistido de convencer os vizinhos
não insisti
como se o prédio não fosse cair

o prédio desabado o trabalho dos bombeiros
que eu não ultrapassasse a faixa
na sacola um sonho de doce de leite da padaria
a vizinha chorando muito eu achei que ela morava sozinha a vizinha tudo [aquilo de pão
o que ela levaria do apartamento se acreditasse que ia cair
eu não sei
se o prédio cai, o que isso quer dizer?

deus me livre de premonições
receber espírito até que tudo bem
mas ser a responsável por avisar e
não conseguir avisar o futuro e
as pessoas voltando pros seus açúcares, pares de chinelo, sofás encardidos
logo o fim e eu
plantas que também são seres vivos
os azulejos, minhas anotações no livro do Victor
onde tava o bebê no sonho?

ficar sem fome
a zero
conferir os azulejos diariamente
assistir o fim pela segunda vez

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