uma mulher

Mayara Blasi
Isso Não é um Jogo
3 min readJan 17, 2024
Paula Rego — A cinta (1995)

posso contar o caso dessa mulher ágil que, apesar de ágil, desde criança contava suas escovadas de cabelo. vinte e duas. com os cabelos penteados saía de casa. caminhava muito e carregava em um caderno um pouco do próprio inferno. mesmo feia era atraente, ou provocante sem esforço, e isso gerava uma confusão na sua cabeça. quando ainda morava com os pais, entreouvia dizerem ser afetada, sem saber a que se referiam. não entendia como uma pessoa afetada motivasse desejo, por isso evitava estranhos o quanto podia. limpava bem os sapatos antes de sair de casa, a sola inclusive. quando estava prestes a chover dizia “é apenas uma nuvem”, pra reverter o quadro. falava com aquele sotaque herdado, meio gafanhoto, um repertório limitado de frases. é impossível dizer o que lhe havia acontecido antes, mas o fato é que algo muito grave aconteceu em Manchester. então levava os dias de forma assídua e desinteressada, caminhava pra adiantar a noite. parava na padaria, no parque, na praça da prefeitura. no mercadinho daquela senhora árabe uma vez por semana. rejeitava guarda-chuvas, embora chovesse muito. na padaria pedia um sanduíche e vinho. não serviam vinho, ela ia de chá, da próxima vez pediria vinho. acreditava em anjo da guarda e fechaduras. e no fogo. o tremor insistente nas mãos eram premonições, daí ajeitar o futuro para uma perfeita ordem: o caminhão com porcos às segundas, uma mãe e seu bebê descascando o tronco da pitangueira na praça, a seca do inverno, viagens suficientes do sabiá com galhos na boca, maçãs frescas na venda, lençóis passados. quando em casa desmaiava no sofá assistindo o fogo que ela mesma fazia. sentia os nervos porque coçavam. no dia seguinte, de novo a rua. ela zombava dos outros, mas falava baixinho, não ofendia. na verdade, não a ouviam. ria sem mostrar os dentes e quando sentia vento na barriga deixava-se enfurecer um pouco, como recomendava a avó. ninguém notava. não guardava nenhuma ilusão sobre si mesma. escovava os cabelos vinte e duas vezes ao acordar. e ao dormir. a única pessoa que admirava mesmo já tinha morrido. Ana I, rainha da Grã-Bretanha. muito morta. nada sabia sobre ela além das tentativas de fazer vivo um herdeiro. admirava-a por algo que estava escrito naquelas cartas que roubara do museu, uma coragem, mas também sentia pena. às vezes lia as cartas e ria. ria e chorava em seguida, o que a fazia questionar o valor do riso anterior. um dia queimou as cartas roubadas. ficou com a imagem de Ana em seu castelo, as pernas inchadas de doença. do contrário, as pernas da mulher não inchavam, porque cortava a cidade fugindo dos homens da vila. um dia recebeu este bilhete, do anônimo: “penso em você como os católicos pensam em suas santas”. como os católicos pensam em suas santas — não tinha certeza se entendia. o anônimo era o padeiro. ela soube porque o bilhete foi escrito em um papel de pão. o padeiro era uma das poucas pessoas com que ela conversava fora da cabeça. tinha bigode e barriga grandes, bochechas um pouco rosadas, e uma esposa. achou-se exposta ao ridículo. já que não tinha vinho, não voltou mais na padaria. na farmácia não tinha pão. lia os rótulos dos produtos com as duas mãos no bolso. os nomes químicos. era agosto. voltava pra casa e tomava um banho de ervas. às vezes agradecia sem jeito, por não saber a quem agradecer. depois fazia fogo pra assistir, como o centro da Terra seu ventre. escovava seu cabelo vinte e duas vezes antes de dormir.

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