Universidade

Vic Freitas
Isto Não é um Artigo Científico
5 min readDec 10, 2017

Sobre bolhas, alfinetes e a urgência de construir diálogos com a sociedade

U.ni.ver.si.da.de

substantivo feminino

1.

qualidade ou condição de universal.

2.

instituição de ensino e pesquisa constituída por um conjunto de faculdades e escolas destinadas a promover a formação profissional e científica de pessoal de nível superior, e a realizar pesquisa teórica e prática nas principais áreas do saber humanístico, tecnológico e artístico e a divulgação de seus resultados à comunidade científica mais ampla.

Você consegue se lembrar de quem era antes de chegar à universidade? A adolescência é uma fase estranha. Não se tem ideia ainda quem se quer ser, seus braços e pernas cresceram demais e você não sabe bem o que fazer com eles. Suas opiniões são quase todas influenciadas pela família ou amigos e eles, assim como você, não têm muita certeza sobre as próprias convicções. Você se esforça para impressionar alguma pessoa específica ou se encaixar em um grupo. Qualquer grupo. Quando te dizem que o funk é um estilo musical horrível, você só concorda. Se o colega afeminado vira tópico de piadas na roda de conversa, você ri. Na época não parecia preconceituoso. Até que o contato com uma perspectiva diferente da que você tinha torna tudo tão óbvio.

Nem sempre esse contato acontece na universidade, mas esse é definitivamente um lugar propício para que esses tipos de mudanças aconteçam. Uma vez que você questiona o seu eu do passado, não tem mais volta. Quanto pior você parecer para si mesmo, melhor: se não pensamos da mesma maneira de antes, é porque estamos evoluindo. Normalmente esse tipo de mudança não acontece sozinha. Com o passar das aulas e com as conversas que acontecem depois delas, percebe-se que o mundo não é assim tão preto no branco. Somos apresentados a conceitos sobre territorialidades e disputas sociais, aprendemos sobre o papel da mídia na construção de identidades e como nós mesmos, sem pensar uma vez sequer, reproduzimos muitos discursos problemáticos.

Se durante o ensino médio e adolescência seus amigos tinham uma influência crucial na sua abordagem do mundo, na universidade não é diferente. Dessa vez, mais do que antes, essas pessoas te acompanharão não só pessoalmente, mas serão também espetáculo e plateia nas redes sociais. E aí essas plataformas passam a ser como uma vitrine, ou melhor, um espelho. E ele pode ser lindo. Um relatório do jornal britânico Mirror aponta para os aspectos interpessoais envolvidos na campanha do Facebook em comemoração à legalização do casamento gay nos Estados Unidos. Segundo o estudo, usuários da plataforma estariam mais propensos a mudar as respectivas fotos, colocando o efeito de arco-íris, se seus amigos também tivessem feito a troca. A pesquisa não foi capaz de concluir, no entanto, se a influência das visões progressistas do círculo de amizades foi decisiva para a manifestação do apoio ou se pessoas com os mesmos tipos de visões políticas já estão agrupadas de forma orgânica.

Esse efeito bolha torna nossas redes sociais lugares confortáveis, cheios de pessoas que ecoam nossas ideias progressistas novinhas em folha. Isso não se reflete apenas em nossos murais, o interesse das pessoas por diversidade sexual, racial e de gênero parecem ter aumentado consideravelmente. Um dossiê disponibilizado pelo Google mostra que o aumento de buscas por termos relacionados à diversidade dobrou desde 2012. Além disso, o relatório aponta para o crescimento da popularidade de marcas que apoiam causas sociais e tenham políticas voltadas para a igualdade de direitos entre os consumidores em idade universitária. O mundo está se tornando um lugar maravilhoso, certo? Quase. Ainda que os números desses relatórios sejam verdadeiros e pareçam animadores, eles são apenas parte da realidade. Em 2016 a taxa de matrículas no ensino superior presencial sofreu sua segunda queda consecutiva. As taxas de evasão, de acordo com a mesma pesquisa, subiram consideravelmente. Em um breve levantamento de dados, o site Guia do Estudante atenta para a situação dos negros no ensino superior no Brasil. Ainda que a representem 50,7% da população do país inteiro, são minoria entre os concluintes do ensino superior. Aparentemente, a universalidade desse espaço só vai até onde o dicionário permite.

Para a parcela da população que sortuda o suficiente para ter acesso à universidade, debates sobre as nuances do movimento negro e as lutas diárias contra o racismo institucional e a questão do feminismo são parte das rotinas de aula. Ainda assim em um dia, um jornalista brasileiro consagrado é gravado fazendo piadas racistas. No outro, uma mulher é estuprada e morta ao oferecer uma carona em seu carro. Os registros de racismo generalizados, dos casos de violência contra a mulher e da consequente culpabilização das vítimas não pretendem diminuir em um futuro próximo.

Por que o debate sobre questões tão triviais nos ambientes universitários encontra estranheza fora deles? Em partes porque a comunidade acadêmica não está assim tão preocupada com criar um diálogo. E se antes sua bolha era construída pela necessidade de aceitação de um grupo, hoje ela pode estar se apoiando precariamente na comodidade trazida pelas opiniões consonantes que reverberam das timelines e corredores. O reflexo que nos encara de volta a cada atualização de página é uma confirmação da inevitabilidade de nossas vidas em grupo. Mas até que ponto essa não é apenas mais uma manifestação do nosso narcisismo?

Assim como um balão que estoura repentinamente, ensurdecendo aqueles à sua volta, precisamos tomar a coragem de estourarmos nossas bolhas particulares e encarar o fato de que nossos círculos sociais, apesar de confortáveis, são perigosos. O conceito de universidade vai muito além daquele descrito no dicionário. O retorno que devemos à sociedade como frequentadores desse espaço não deve se ater exclusivamente aos artigos acadêmicos, mas também à propagação dos novos paradigmas e visões de mundo com os quais temos contato. O alfinete está nas nossas mãos.

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